Português

Quatro Estrelas

Comédia de Jean-Pierre Martinez

Tradução pelo próprio autor
4 PERSONAGENS

Jonathan
Jéssica
Ivan
Nazário/Natália
(A personagem de Nazário também pode ser uma mulher que se chamará Natália).

Se dois são companhia e três são multidão, com quatro um está demais nesta louca comédia espacial! Quatro passageiros que nada têm em comum participam de uma viagem turística ao espaço. A convivência entre eles está dentro da normalidade, até que a torre de controle informa que, devido a um vazamento de oxigênio, eles precisarão retornar imediatamente. Com o pequeno inconveniente de que não haverá oxigênio para todos eles. Um deles deve se sacrificar, do contrário, todos morrerão. Eles têm uma hora para decidir quem será o herói ou o assassino… O relógio está andando.


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Há um autor na sala?

Comédia de Jean-Pierre Martinez

tradução pelo próprio autor

4 PERSONAGENS (homens ou mulheres)

Passaram sete anos desde que todos os teatros foram encerrados devido à crise sanitária. Três presumíveis actores chegam ao palco para um casting. A menos que se trate de uma leitura pública. Ou mesmo a estreia do espectáculo… O problema é que eles não têm o texto da peça. O autor ainda não o escreveu. Vamos ter de improvisar…


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GAY FRIENDLY

Comédia de Jean-Pierre Martinez

tradução pelo próprio autor

4 PERSONAGENS

2 homens /2 mulheres ou 4 mulheres

Um saco cheio de notas pode ajudar a dar à sua filha um belo casamento gay. Mas os ganhos mal obtidos nunca compensam…


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Quarentena

Comédia de Jean-Pierre Martinez

tradução pelo próprio autor

4 PERSONAGENS

Quatro pessoas que não se conhecem encontram-se, infelizmente em quarentena, no que se revela ser um teatro abandonado. Atrás de um vidro imaginário, algum indivíduos (os espectadores) observam-os. As pessoas supostamente doentes interrogam-se: “Por que vírus poderiam ter sido infectadas, qual é exactamente o seu risco, quando e como é que tudo isto vai acabar? Gradualmente revela-se que este impasse se instala num futuro próximo, no qual o Big Brother reina supremo, e que a razão para esta quarentena talvez não seja estritamente médica.


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Um caixão para dois

Comédia de Jean-Pierre Martinez

tradução pelo próprio autor

4 PERSONAGENS

Quando dois candidatos eleitorais, no mesmo dia da eleição, devem também cremar os seus respectivos cônjuges, existe o risco de cremar os seus respectivos cônjuges, há o risco de rechear as urnas. Especialmente quando o director funerário recrutou um agente funerário temporário com uma temperatura incontrolável.


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Milagre no convento de Santa Maria-Joana

Comédia de Jean-Pierre Martinez

tradução pelo próprio autor

10 PERSONAGENS

Na loja conventual cujas vendas financiam as boas obras das irmãs ervanárias, o famoso elixir de Santa Maria-Joana perdeu todo o esplendor de outrora, a ponto de pôr em risco a economia desta peculiar comunidade. Felizmente ou infelizmente, a Irmã Ana, que estava encarregada da destilaria do convento, morre, o que levará à chegada da irmã Inês, uma freira revolucionária noviça que a substituirá nesta delicada posição. A Irmã Inês conseguirá renovar a fórmula do elixir e decidirá acrescentar uma erva misteriosa à preparação. O sucesso espetacular da nova confecção dará muito o que falar… Será este o último milagre de Santa Maria-Joana?


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No fim da linha

Comédia de Jean-Pierre Martinez

traduzida por Cláudia Negrão

2 PERSONAGENS

Uma escritora sente-se bloqueada e não consegue escrever uma linha. O seu editor exige-lhe uma nova obra e ela sente-se incapaz de o fazer. Recebe uma visita de uma jornalista que a vem entrevistar mas nem tudo o que parece é. Uma comédia inteligente que vai surpreendendo o público à medida que se desenrola a relação entre estas duas mulheres num jogo de forças e manipulação da verdade.


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NO FIM

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Um pequeno assassinato sem consequências

Comédia de Jean-Pierre Martinez

Tradução pelo próprio autor

3 PERSONAGENS : Alban – Eva – Joana

Do adultério involuntário ao homicídio involuntário, vai apenas um passo, facilmente transponível. Mais difícil é fazer desaparecer a prova do crime…

É possível uma adaptação desta peça para dois homens e uma mulher:
tudo o que tem de fazer é trocar o género de todas as personagens.


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STRIP POKER (PORTUGUÊS)

Comédia de Jean-Pierre Martinez

Tradução pelo próprio autor

4 PERSONAGENS

Pedro – Maria – Joaquim – Carmo

Esta comédia de sucesso já foi representada em teatros de todo mundo :

Paris, Madrid, Miami, Buenos Aires, Montevideo…

Convidar os novos vizinhos, para se conhecerem: uma ideia arriscada que pode custar caro e dar lugar a uma comédia na qual cada um deve pôr uma carta na mesa…


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ama

ACTO 1

Na sala de visitas, Maria, loira e sexy, tendo-se esmerado na toilette, põe uma mesa de festa para quatro. O seu telemóvel toca. Ela atende.

Maria (amável) – Si, estou… (Irritada). Ah, não, lamento, não é o Pedro, fala Maria, a sua mulher… Está a ligar para o meu telemóvel… Posso deixar-lhe um recado…? Está bem… Não, não há problema…

Ela volta aos seus preparativos com uma alegria eléctrica. O seu telemóvel toca de novo.

Maria (ainda mais irritada) – Estou…? (Amavelmente) Ah, olá Júlio… Sim, sim, está tudo bem… Cheguei a dizer-te que deixei de fumar…? É verdade, desde hoje de manhã… Não, descansa que não estou grávida, mas já estava a fumar dois maços por dia. Ao preço a que está o tabaco, calculei que num ano posso poupar para pagar um safari no Quénia. Se só aguentar uma semana, posso ir jantar à outra banda. De qualquer maneira, com o que já poupei hoje, comprei um frasco de Nutella… (Suspirando) Nunca pensei que custasse tanto… Mas o que é que tu queres? Agora já nem se pode fumar nos cemitérios… Sim, o Pedro está bom. À espera de melhorar… Não, estava a falar do trabalho dele… Desculpa lá mas tenho que desligar, o porco com ameixas já começa a secar. Falamos depois, ok? Tchau tchau…

Maria desliga, cheira o ar e lança um olhar para os espectadores.

Maria – Cheira a gás, não acham…?

Ela dispara para a cozinha. Pedro chega, com um ar de intelectual, a assobiar. Tira a gabardina, senta-se no sofá e folheia o Público cujo título de capa é: Os telemóveis são cancerígenos? Maria regressa. Ele pousa rapidamente o jornal na mesa e põe um ar trágico.

Maria (alegremente) – Olá!

Pedro (sinistro) – Olá…

Maria (vendo a cara dele) – Algum problema?

Pedro – Vou ser dispensado…

Maria – Dispensado! Mas porquê?

Pedro – Deslocalização…

Maria – Ora bolas… Mas que chatice…

Ele enfia-se pelo sofá abaixo.

Pedro (patético) – Não me vais deixar, pois não?

Maria abraça-o para o consolar.

Maria – Estás parvo, ou quê? Eu trabalho, não? Ainda por cima deixei de fumar. Com as economias que vamos fazer, tu até podias passar a meio-tempo… E, se for preciso apertar ainda mais o cinto, apertamo-lo. (Uma mão na barriga) Vou deixar de comer Nutella…

Pedro (acrescentando) – Eu não quero viver à tua custa… Preferia morrer…

Maria – Não digas asneiras… Somos Casados, Pedro! Para o melhor e para o pior! Deixaremos o melhor para o fim… Mas é uma estupidez eles mandarem-vos assim para outro lado sem avisar…

Pedro – Sabes, agora… com a mundialização…

Maria – Mesmo assim… Deslocalizar a Biblioteca Nacional… E onde é que a vão pôr? O edifício é enorme…

Pedro – Na China… Vão desmanchar peça a peça, encaixotar e reconstruir numa zona industrial nos arredores de Cantão. Já começaram a desmontagem…

Maria (aterrorizada) – Diz-me que é mentira!

Pedro – Não, não… é mesmo verdade…

Maria – Mas o que é que os chineses vão fazer com todos os livros? Não vão perceber nada… nem vão conseguir arrumá-los por ordem alfabética…

Pedro – A literatura vai ser toda convertida em esperanto por tradutores automáticos e, depois, vão numerar tudo e guardar num computador central em forma de pagode. Claro que o acesso aos dados vai ser pago… um contrato de adesão como para a TVCabo. Quanto ao papel… será reciclado. Pelo menos assim evita-se que cortem os últimos hectares de florestas de eucaliptos que ainda restam na China. (Suspirando) Ao menos que o meu sacrifício permita salvar alguns pandas…

Maria (oprimida) – Não pode ser verdade…

Pedro tenta manter um ar sério mas desmancha-se a rir.

Pedro – Claro que não! Acreditaste mesmo nesta parvoíce?

Maria (furiosa mas aliviada) – Não devias brincar com coisas sérias…

Pedro – É verdade que agora não dava jeito nenhum que eu perdesse o meu emprego. Nem é muito mal pago… e deixa-me tempo livre para escrever… Por falar nisso, tenho uma boa notícia para te dar. As Edições Confidenciais aceitaram publicar a minha peça!

Maria (fingindo entusiasmo) – As Edições Confidenciais… Genial!

Pedro – Nem tanto… a edição é por minha conta… Preciso de vender pelo menos quatro mil exemplares para reembolsar os custos de impressão. Quatro mil livros vendem-se depressa, não achas?

Maria – Entre os teus pais e os meus… Se cada um comprar mil!

Pedro esfrega as mãos de contente com um sorriso de satisfacção.

Pedro – Então hoje janta-se ou não? Esta noite há Strip Poker…

Maria (desconcertada) – Queres que façamos os dois um strip poker?

Pedro – Strip Poker, aquele reality-show na televisão, sabes bem o que é!

Maria – Eu? Não…

Pedro – Convidam casais. Cada vez que um acha mais prudente não responder à pergunta que outro lhe faz, tem que despir uma peça de vestuário!

Maria (suspirando) – Não percebo como é que podes ver essas porcarias… E em que canal vês?

Pedro – Num canal da TVCabo… Hoje é a final!

Maria – Pois hoje, final ou não, não vais poder ver…

Pedro – A televisão avariou-se?

Maria – Não… Mas não vais poder ver…

Pedro – Porquê, proíbes-me?

Pedro apercebe-se que a mesa está posta para quatro pessoas.

Pedro – Não me digas que convidaste os teus pais?

Maria – Os vizinhos.

Pedro – Os vizinhos? Mas eles mudaram-se há um mês…

Maria – Os novos vizinhos!

Pedro – Os novos vizinhos? Mas nem sequer os conhecemos!

Maria – Por isso mesmo. Cruzei-me com a senhora na casa do lixo… E pensei que seria uma maneira de nos conhecermos

Pedro – Para quê?

Maria – Simplesmente para os conhecermos…

Pedro – Qual o interesse em conhecê-los?

Maria – É sempre bom conhecermos os vizinhos… Nunca se sabe se vamos precisar deles…

Pedro – Precisar deles…? Para quê?

Maria – Sei lá… para regarem as plantas quando saímos…

Pedro – O teu gato comeu a única planta verde que tinha no meu escritório, no domingo passado, quando fomos almoçar aos teus pais.

Maria – Isso mesmo! Se houvesse alguém para dar de comer ao meu gato, ele não teria destruído a tua planta verde… A propósito, não me lembro de ter visto o gato hoje… bizarro…

Pedro suspira.

Pedro (inquieto) – Eles têm filhos?

Maria – Penso que têm três…

Pedro – Não me digas que também os convidaste?

Maria – De certeza que preferem ficar tranquilamente em casa deles. (Irónica) Para não perderem a final do Strip Poker.

Pedro – Não remexas mais na ferida, por favor…

Maria – E moram mesmo aqui ao lado…

Pedro – Mas não eram os vizinhos da frente?

Maria – Os vizinhos da frente? Suicidaram-se há seis meses! Não te lembras do aparato de bombeiros durante a noite, com as luzes e as sirenes?

Pedro – Não…

Maria – Pois eu acordei com aquela barulheira toda. E desde esse dia que tenho pesadelos. Eles deixaram o gás aberto… Foi uma sorte o bairro não ter ido todo pelos ares…

Pedro – Há pessoas que não pensam mesmo nos outros… E porque é que se terão suicidado assim? E logo os dois?

Maria – Vá-se lá saber… Se calhar nessa noite não havia nenhum programa interessante na televisão… Se os tivéssemos convidado, talvez…

Pedro – Não me vais dizer que convidaste os vizinhos para jantar só para não te sentires responsável se, por acaso, eles decidissem suicidar-se hoje à noite…?

Maria – Sabes, hoje estranhei receber várias chamadas para ti no meu telemóvel…

Pedro – Ah pois, desculpa, como não sei o que fiz ao meu, deixei o teu número no atendedor do escritório. Para o caso de algum produtor tentar ligar-me por causa da peça… É melhor que esteja sempre contactável, percebes?

Maria (siderada) – O número do meu portátil? Não teria sido mais fácil comprares outro?

Pedro – Oh… E até pensei que podíamos viver muito bem sem telemóvel, não?

Maria – Pois sim… Quando se tem uma mulher à mão de semear para fazer de telefonista…

Pedro – Ouve lá, tu estás a tentar deixar de fumar e eu decidi passar sem telemóvel. Vamos ver quem aguenta mais tempo.

Maria (exasperada) – Pois, mas eu não te peço para fumares os cigarros por mim!

Pedro mergulha de novo na leitura do Público, do qual só os expectadores podem ver o título de primeira página (O telemóvel é cancerígeno?). Maria olha-o surpreendida.

Maria – Não achas que podes ir mudar de roupa antes que eles cheguem?

Pedro – Quem?

Maria – Os vizinhos!

Pedro – Ah, é verdade! Já tinha esquecido esses dois!

Pedro, resignado, prepara-se para ir mudar de roupa.

Maria – E eu vou ver se o forno se mantem aceso. Cheira um pouco a gás, não achas?

Pedro encolhe os ombros e sai. Maria também sai e volta logo a seguir com garrafas e copos para preparar os aperitivos. Pedro volta logo a seguir, vestido descontraídamente.

Maria – Foste pôr o pijama?

Pedro – Não é um pijama! É um fato de treino para estar em casa.

Maria – E as pantufas, ou também não são pantufas…?

Pedro – Ouve lá, se queremos ser íntimos dos vizinhos, mais vale estarmos à vontade, não achas…?

Maria – Imagina que ele vem de fato e gravata e ela de vestido de noite… Não lhes disse que seria uma festa do pijama…

Ele volta a sair, suspirando. Ela continua a preparar as coisas. Ele regressa vestido normalmente.

Pedro – Estou bem assim?

Maria – Podias estar melhor … mas está bem…

Pedro olha para o correio que está na mesa de apoio.

Pedro – A Comuna, Livros Cotovia, Companhia de Teatro de Almada…

Ela olha-o intrigada.

Pedro – Infelizmente não é nada disto… (Pegando nas três cartas) Portugal Telecom, EDP, EPAL… (Suspirando) Que belo trio…

Maria – Será que os correios estão outra vez em greve? Nesse caso, só garantem o serviço mínimo. Só entregam as facturas…

O telemóvel de Maria toca de novo, ela responde.

Maria – Está lá…? (Com voz amável e afectada) Não, está a falar com a telefonista, não desligue por favor, vou-lho passar. (Passando-lhe o telemóvel) É o teu amigo Paulo…

Ele agarra no telemóvel como se não se passasse nada de especial.

Pedro – Estou, olá Paulo… Tudo bem… Sim… Há algum tempo, sim… Terça-feira? Porque não… Mas tenho que falar com a Maria. Agora ela está ocupada. Ligas-me amanhã? Ok, se eu não estiver em casa, tenta o telemóvel…

Olhar furioso de Maria.

Pedro – Ok, até amanhã, Paulo…

Ele desliga.

Pedro – Mas que chato!

Maria – O que é que ele queria?

Pedro – Convidar-nos para jantar na terça-feira. É o aniversário da mulher dele…

Maria – Pensava que ele era o teu melhor amigo…?

Pedro – Os aniversários deprimem-me… Eu por acaso convido-os para os teus aniversários?

Maria – Para os convidares precisavas de saber a data…

Pedro – Pensando bem, ficarei bem mais tranquilo sem telemóvel. O que é que estarão a fazer os nossos vizinhos? Não vão dizer-nos que ficaram parados num engarrafamento … moram mesmo aqui à frente!

Maria – Ao lado…

Pedro – Isso mesmo, nem sequer têm que atravessar a rua!

Maria – Aguenta, ainda só são nove horas…

Pedro – Normalmente a esta hora já acabámos de jantar. Começo a ficar esganado de fome… (Espantado) Sobretudo porque cheira muito bem. (Incrédulo) Que iguaria é que preparaste?

Maria (orgulhosa) – Porco com ameixas. Vi a receita na Caras…

Pedro – Ok… Não achas que é arriscado fazer receitas novas… mas pronto…

Pedro – Nem sei como se chamam essas pessoas…

Maria – Ela é Carmo, e ele Joaquim, creio…

Pedro – Ah, já são íntimos, pelo que vejo… E o apelido?

Maria – Já não me lembro. É um nome de detergente para a roupa.

Pedro – Skip? (Maria faz sinal negativo com a cabeça) Persil? Não me digas que é Omo?

Maria – Star! (Já pouco segura) Ou Stern… Ou Estrela…

Pedro – Star ou Stern ou Estrela?

Maria – Sei lá. Não me lembro. Sei que associei a um detergente… Logo se vê… Isso tem cá uma importância

Pedro – Pode ter! Porque se for Stern, o teu porco com ameixas… Sempre podem comer as ameixas. São boas para os intestinos…

Maria (preocupada) – Bolas, não pensei nisso…

Pedro – Pois… Quando se convidam pessoas que não se conhecem…

Maria – Tens razão, mas como é que eu ia desconfiar? Joaquim e Carmo, não são…

Pedro – Nem todos os muçulmanos se chamam Mohamed…

Maria – Pensas que eles são muçulmanos…?

Pedro – Deixa estar, no que diz respeito ao porco vai dar ao mesmo, não é?

Maria – Talvez não sejam praticantes…

Pedro – Se calhar devias prever uma pizza congelada… Vegetariana, de preferência…

Tocam à porta. Maria fica petrificada, em pânico.

Maria – E agora o que é que fazemos?

Pedro – Acho que não podes deixar de abrir a porta. É o que se faz quando se convidam pessoas e elas tocam à porta. Ou então fechamos as luzes e vamos ver a final de Strip Poker na casa de banho…

Maria – Vou abrir…

Ela desaparece para ir abrir a porta e receber os vizinhos.

Maria (off) – Boa noite, Boa noite… Entrem, por favor… Ora, não era preciso, Não era preciso…

Pedro – O presente Skip… Ou Star… Ou Estrela…

Maria regressa à sala de jantar, com um ramo de flores na mão, seguida pelos vizinhos.

Pedro (imitando a amabilidade afectada de Maria) – Boa noite, boa noite… Tudo bem…?

Maria – Que flores são? Margaridas? As pétalas são enormes!

Carmo (incomodada) – São túlipas…

Maria – Claro, são magníficas!

Carmo – Podem ter murchado um pouco com o calor.

As flores estão efectivamente muito murchas

Maria – Vou já pô-las numa jarra com água…

Pedro – Talvez ainda ressuscitem…

Os vizinhos entram. Carmo, morena, bem conservada para cinquenta anos, magra, vestida elegantemente mas sem exageros, estilo saia e casaco e cabelo apanhado. Joaquim, mais descuidado e simplório, uma garrafa na mão, veste um fato mais maltratado que as flores. Em suma, um casal convencional contrastando com o estilo jovem e mais descontraído de Pedro e Maria. Maria faz as apresentações.

Maria (para Joaquim) – Apresento-vos o meu marido (Enfatizando o apelido) Pedro Açafrão…

Os dois maridos cumprimentam-se com um aperto de mão.

Pedro (sinistro) – Muito prazer…

Maria (para Joaquim) – E o senhor?

Joaquim (sorridente) – Joaquim…

Maria – Apenas Joaquim, muito bem…

Joaquim entrega a garrafa a Pedro.

Joaquim – É para vocês, é melhor pô-la no frigorífico…

Pedro – Um Raposeira! Muito obrigado, Joaquim…

Joaquim – Bem fresco é tão bom como o champanhe, não acha?

Pedro (irónico) – E assim não nos arruinamos, não é? Vou pô-la no congelador. Para que fique ainda melhor.

Pedro leva a garrafa para a cozinha.

Maria (embarassada) – Encontraram facilmente?

Cara de vizinhos que moram mesmo ao lado.

Maria (tentando emendar) – Não, sei muito bem que moram aqui ao lado…Queria dizer… Se tinham encontrado facilmente… (improvisando) alguém para ficar com os vossos filhos…

Carmo – Sim! A mais velha toma conta dos dois pequenos. E, se não se importarem, daqui a um bocado vamos lá dar uma vista de olhos.

Pedro regressa.

Maria – Como é que se chamam os vossos filhos?

Carmo – Sara, Ester e o mais novo Benjamim.

Maria tenta perceber a que religião pertencem os vizinhos, mas não chega a qualquer conclusão.

Maria – Benjamim… É lógico … O mais pequeno…

Carmo – Presumo que não tenham filhos…

Ligeiro incómodo.

Maria – Ainda não… (aventurando-se) Desculpem, mas o vosso apelido é Star, Stern ou Estrela…?

Pedro – Como o detergente…

Joaquim – Estrela.

Maria – Ufa! Receávamos que fossem judeus!

Mau estar dos convidados. Maria, petrificada, tenta emendar a mão.

Maria – Lamento muito, mas acontece que eu fiz porco assado com ameixas… Mas pode-se alterar. Tenho com certeza uma quiche no congelador… Sem cerimónias…

Pedro – A menos que marquemos o jantar para outro dia…

Maria fuzila-o com os olhos.

Carmo – Não, não mudem nada por nossa causa. O porco assado está muito bem…

Joaquim (trocista, sem rir) – Em contrapartida, as vossas ameixas… são Kosher? (Ar embarassado de Maria) Estava a brincar… Desde que não tenham caroço! É que digo sempre que é por causa dos dentes.

Maria (forçando-se a sorrir) – Agrada-me ver que tem sentido de humor… E depois judeus ou muçulmanos, hem?

Pedro – Sim, podia ter sido pior! O Senhor podia ser dentista ou informático…

Novo mau estar…

Maria (para desanuviar o ambiente) – E se passássemos aos aperitivos…?

Escuro

ACTO 2

 

Os dois casais estão nos aperitivos. Pedro e Maria já estão com um ar bem chateado mas ouvem educadamente a conversa insípida de Joaquim.

Joaquim – O problema, para nós, dentistas, é que agora passamos mais tempo a preencher papéis do que a tratar dos dentes. E como tudo é feito no computador… Digo sempre que me ensinaram a manusear a broca e não o rato. Felizmente a minha mulher dá-me uma ajudinha. A informática é com ela, mas eu…

Pedro e Maria concordam amavelmente.

Joaquim – E de hoje em dia as profissões liberais são muito mal tratadas… A propósito, conhecem esta anedota?

Pedro e Maria com ar educadamente interessado.

Joaquim – É um dentista que faz um cruzeiro no Pacífico com a sua mulher. Naufrágio! O navio afunda-se…

Maria, forçada, desata a rir às gargalhadas… Consternação dos outros três.

Joaquim – Não, não era agora…

Maria fica de novo séria.

Joaquim – Andam à deriva durante uma semana antes de chegarem a uma ilha deserta. A mulher, claro, está muito inquieta e diz ao marido: nunca mais nos vão encontrar!

Maria volta a rir às gargalhadas.

Joaquim – Ainda não é agora…

Maria fica de novo séria.

Joaquim – O marido pergunta-lhe: pagaste a Segurança Social antes de virmos? A mulher: não! O marido responde: então não te rales porque eles vão encontrar-nos!

Joaquim desata a rir com a sua anedota. Maria, escaldada, não ri.

Joaquim – Era agora…

Maria faz um esforço para rir, com ar idiota. Joaquim tira o maço de tabaco e oferece um cigarro a Pedro.

Joaquim – Um cigarro?

Pedro – Não, obrigado, eu não fumo…

Joaquim estende o maço a Maria.

Maria – Deixei de fumar esta manhã…

Carmo olha para Joaquim com ar de reprovação e ele guarda o maço.

Joaquim – Pronto… Assim sendo não vos vou encher de fumo… Vejam só… Falam tanto dos cigarros… mas os telemóveis também não fazem lá muito bem à saúde… Li no Público um artigo sobre isso. Parece que, a partir de um quarto de hora por dia, um tumor no cérebro é garantido…

Maria agarra no Público que Pedro deixou debaixo da mesa de apoio e passa uma vista de olhos no título: Os telemóveis são cancerígenos?

Joaquim – Têm toda a vantagem em não ultrapassar esse tempo!

Maria lança um olhar incendiário a Pedro.

Joaquim – Eu fumo mas não tenho telemóvel!

Maria (irónica) – O meu marido também não. Prefere que seja eu a ter um tumor… E não ele…

Joaquim – Sabem o que é que é mais penoso na minha profissão?

Pedro e Maria fazem de conta que pensam na resposta.

Joaquim – Ter que estar sempre a lavar as mãos entre dois clientes. Olhem para as minhas. São secas! Dir-me-ão que eu poderia por luvas, mas… Pensem um pouco… É um trabalho muito minucioso, a arte de dentista, sabem? Já tentaram enfiar uma agulha com luvas de boxe?

Pedro – Nunca. Aliás, eu coso muito pouco. Prefiro o tricot.

Joaquim – Reparem, como eu costumo dizer, nós, os dentistas, temos uma vantagem sobre os psicanalistas: no meu consultório o doente também chega, deita-se e abre a boca… Mas só tem o direito de me ouvir!

Carmo – Não vês que estás a chatear os nossos vizinhos com as tuas histórias?…

Maria – Não, não nos maça nada…!

Carmo – E se nos falassem de vocês… (Para Maria) Você é professora, não é?

Maria – De solfejo, sim… Mas não estou segura de que seja mais interessante…

Pedro olha para a mulher fazendo-lhe ver que percebeu a intenção da mentira.

Carmo – Ah, o solfejo… Estudei isso durante mais de 10 anos quando era jovem…

Maria – E tocava algum instrumento?

Carmo – Não, nem sequer um… Os meus pais deviam pensar que o solfejo era uma língua morta. Como o latim e o grego. Mas quando fiz 18 anos disse: chega!

Pedro (irónico) – Estou a ver que era uma adolescente um pouco rebelde, diga lá…

Carmo – Depois inscrevi-me num curso de danças de salão.

Maria – Mas que mudança…

Joaquim (ternamente) – Foi lá que nos conhecemos, Carmo e eu…

Maria (fazendo de conta que está interessada) – Não me diga?

Joaquim – Sim, sim… Nessa época eu dançava muito bem, sabe… Ainda agora não danço nada mal… Parece que 40% dos homens conheceram as suas mulheres convidando-as para dançar. (Para Pedro) Também foi assim que seduziu a sua encantadora mulher…

Pedro – Não, nada disso… Comecei por agarrá-la à bruta, num portão, num dia de temporal, depois de lhe ter proposto abrigar-se no meu chapéu-de-chuva… Parece que são raros os casais que se conheceram desta maneira…

Silêncio embaraçante.

Maria – O meu marido está a brincar, claro…

Pedro – Ela detesta que eu conte isto…

Maria – Posso servir-vos outro aperitivo?

Carmo – Sim, obrigada… Mas só um dedo…

Pedro – Antes ou… depois do aperitivo?

Maria fulmina Pedro com o olhar e serve de novo os convidados.

Carmo – Nós inscrevemos o Benjamim, o mais novo, no jardim-de-infância aqui do lado. Sabem se tem boa reputação?

Maria – Não sei, não tenho filhos.

Carmo – Ah é verdade. Desculpe…

Pedro – Não se preocupe… Efectivamente a culpa não é sua, pois não?

Silêncio embaraçante.

Carmo – E você Pedro? O que é que você faz?…

Pedro – Eu? Nada…

Ar de conversa de circunstância dos vizinhos

Carmo (conduída) – À procura de emprego…

Pedro – Não, não estou à procura de nada… Eu diria antes… assalariado inactivo. É muito difícil de conseguir lá chegar, sabem? Ter ar de quem trabalha quando não temos nada que fazer… É mesmo preciso ser um bom comediante.

Carmo (embarassada) – Assim sendo… o que é que faz quando não trabalha? Enfim … quero dizer … fora das horas de expediente…

Pedro – Pois bem… Sou mesmo comediante! Com interrupções…

Carmo – Comediante? Ah, pois é, a sua cara não me era estranha… Em que peças entrou?

Pedro – Costumam ver os Morangos com Açúcar na televisão?

Joaquim – Sim, poucas vezes! Passa à hora em que costumo fazer a sesta…

Pedro – Então já viu a publicidade da agência funerária que passa mesmo antes?

Joaquim não tem ar de quem sabe do assunto.

Pedro – Já viu com certeza! Passa entre os aparelhos auditivos e os elevadores especiais para escadas.

Joaquim – Sim, talvez…

Pedro – Pois bem, o tipo no caixão sou eu…

Joaquim – Não me diga…?

Pedro – Uma espécie de papel de decomposição, digamos…

Olhar furioso de Maria para Pedro.

Carmo – E tirando isso, tem outros projectos…?

Ouve-se a campainha da porta.

Joaquim – Estão à espera de mais convidados?

Maria – Não… Não estamos à espera de mais ninguém…

Pedro vai abrir.

Pedro (off) – Já… Está bem, desculpe, já volto…

Pedro regressa com os calendários dos Correios.

Pedro – É o carteiro, peditório de Natal…

Joaquim – Estão muito avançados este ano… Tem a certeza de que é mesmo um carteiro…?

Pedro – É um tipo com uma farda igualzinha àquela que usa o carteiro que me traz a correspondência todos os dias…

Joaquim – Ah…

Pedro – Não tem por acaso uma nota de dez? É que não tenho nenhum dinheiro trocado… Pago-lhe daqui a um bocado…

Joaquim, reticente, vasculha as algibeiras sem grande vontade.

Joaquim – Que estupidez, dei a última nota de cinco para comprar o espumante. Tenho uma moeda de dois, se quiser…

Pedro – Sendo assim… Vou-lhe dar a garrafa que nos trouxeram… Se não se importarem?

Joaquim – Não… não nos importamos nada…

Pedro passa os calendários a Joaquim.

Pedro – Então só tem que escolher…

Enquanto Pedro vai recuperar a garrafa ao frigorífico, Joaquim tira os óculos de ver ao perto e olha para os calendários com um ar sério e exagerado

Joaquim – Acho que vou ficar com este dos 3 gatinhos… São amorosos… Não achas, Carmo?

Pedro regressa com a garrafa de espumante.

Pedro – Pode ficar com o calendário… Uma vez que o carteiro vai levar a sua garrafa…

Joaquim – Muito obrigado…

Pedro sai com os restantes calendários e a garrafa.

Pedro (off) – Pronto, está mesmo fresquinho… E um Feliz Natal…

Pedro regressa.

Carmo – Feliz Natal… Em pleno mês de Outubro…Estão doidos varridos…

Pedro – Deve ser do aquecimento global … Já não há estações… Até os carteiros andam completamente desorientados…

Maria – Acho que vou ver como está o meu porco com ameixas. Tenho a impressão de que cheira a gás…

Joaquim (levantando-se) – E eu aproveito para dar um pulinho a casa e ver se as crianças estão bem. Antes de passarmos à mesa…

Maria – Vá, esteja à vontade…

Joaquim – Não se incomode que eu conheço o caminho.

Carmo (levantando-se também) – Diga-me por favor, onde é que posso lavar as mãos? Os amendoins… São sempre um pouco gordurosos…

Maria – Claro que sim. A porta mesmo ao fundo do corredor…

Joaquim e Carmo saiem.

Maria – O que é que te deu para lhes dizeres que fizeste de morto na publicidade da agência funerária (Imitando ironicamente Pedro) Uma espécie de papel de decomposição…

Pedro – Oh, foi para eles se ambientarem mais, porque, francamente, o clima estava… Terrível, não? E ainda só vamos nos aperitivos… Acho que não aguento assim até à sobremesa, já te digo…

Maria – É verdade que eles não são lá muito interessantes, mas…

Pedro – Não mesmo, é preciso inventar qualquer coisa que os afugente.

Maria – Agora é demasiado tarde para anular o jantar. Não os voltamos a convidar e pronto.

Pedro – Espera, mas eles vão com certeza convidar-nos, vais ver… Ou julgas que nos vamos safar assim sem mais nem menos. Accionaste uma engrenagem infernal e agora… Não percebes?

Maria – Bolas, estás a exagerar… Bem, vou tentar acelerar o serviço… Olha, vai abrindo a garrafa de vinho enquanto esperamos…

Pedro – Pelo menos consegui livrar-me do espumante. Provoca-me gases…

Maria vai para a cozinha. Pedro agarra na garrafa de vinho. Carmo regressa.

Carmo – Foi muito simpático da vossa parte terem-nos convidade para nos conhecermos melhor… Há muito tempo morei aqui na zona, quando estava no 2º ciclo, mas já não conheço ninguém… E além disso, como vizinhos, podemos sempre ajudar-nos mutuamente…

Pedro – Pois, é isso mesmo que a minha mulher diz… (Uma ideia começa a germinar na sua cabeça) Fico mesmo contente que diga isso… Vem mesmo a calhar porque tenho uma coisa para lhe pedir.

Pedro passa-lhe a garrafa.

Pedro – Tome lá, não se importa de a abrir, não sei se ainda tenho força…

Carmo, intrigada, começa a tentar abrir a garrafa. Sem qualquer jeito, faz esforços para tirar a rolha.

Pedro – Não queria de todo estragar a noite, mas… tenho um cancro…

Surpreendida, Carmo tira a rolha de uma só vez. Pedro recupera a garrafa e serve o vinho, continuando com as suas explicações

Pedro – Acabo de saber que tenho um tumor… Devo ter ultrapassado os 15 minutos…

Carmo – Os 15 minutos…?

Pedro – O telemóvel, sabe… As… As radiações. Devia ser um modelo antigo…

Carmo (condoída) – No cérebro…

Pedro – Pior

Carmo olha para ele, interrogando-se sobre o que poderá ser pior.

Pedro – Nos testículos…

Carmo (horrorizada) – Não me diga…!

Pedro – Sabe, o kit de mãos livres protege a cabeça mas faz com que o problema se desloque…

Carmo – Estou verdadeiramente desolada…

Pedro (levantando o copo para fazer uma saúde) – Vamos lá, à sua… Não nos vamos deixar abater…

Tocam no copo um do outro num ambiente sinistro.

Carmo – Mas… Agora já há tratamentos…

Pedro – Sim… Mas o meu cirurgião está a pensar num transplante… (Pausa) E foi precisamente por isso que pedi à minha mulher para vos convidar… A si e ao seu marido…

Consternação de Carmo.

Pedro – Um pouco mais de vinho?

Carmo, que bem precisa de algo para se animar, não recusa. Ele enche o copo até à borda e ela bebe-o de um só trago.

Carmo – É bom este vinho, não é?

Pedro – Coma uns amendoins…

Carmo serve-se.

Pedro – Então é assim… Preciso de um dador…

Carmo – Um dador…?

Pedro aproxima-se dela e agarra-a pelos ombros.

Pedro – Pode bem viver-se com um só testículo, sabe… A operação é fácil e uma semana depois já nem se pensa nisso. E a cicatriz nem se vê…

Carmo (perplexa) – Quer dizer que… Tenho que falar com o meu marido…Não sei se…

Maria regressa e vê-os naquela posição ambígua.

Carmo (embarassada) – Vou ver se o Joaquim dá conta dos miúdos… Sabem como são os homens…

Ela sai precipitadamente.

Maria – Ora bem… Parece que finalmente simpatizaram um com o outro…

Pedro – Não digas nada, é um pesadelo, é mesmo preciso arranjar uma maneira de nos livrarmos deles…

Maria – O que é que queres que façamos? Não os vamos pôr à porta, fomos nós que os convidámos!

Pedro – Nós…

Maria – Ok, fiz uma asneira, mas o que queres que faça… Como o vinho já está servido… Bolas, esqueci-me do pão…

Antes de voltar à cozinha, Maria dá uma vista de olhos na Caras.

Maria (decepcionada) – Não ficou tão bonito como o da fotografia da receita da Caras…

Pedro – Se pensas que todas as mulheres que vês na rua se parecem com as modelos que se vêm nas revistas… Não vejo porque é que não se pode passar o mesmo com o teu porco com ameixas…

Maria encolhe os ombros e sai, contrariada, mas volta-se para Pedro antes de se dirigir para a cozinha.

Maria – Mesmo assim, tenta ser um pouco mais amável com eles…

Pedro – Para ficarem grudados a nós?

Maria – Se calhar vão ser nossos vizinhos durante vinte anos. Seria uma pena zangarmo-nos com eles logo à chegada…

Pedro – A melhor maneira de ter boas relações com os vizinhos é nunca lhes dirigirmos palavra…

Maria prepara-se para voltar à cozinha.

Maria – Já agora, viste por acaso o gato?

Pedro (embarassado) – Não o vejo desde esta manhã…

Maria – Espero que a tua planta verde não seja tóxica.

Maria sai. Joaquim regressa.

Joaquim – Carmo foi deitar o mais pequeno e já volta. Os outros dois ficaram a ver televisão…

Pedro – Strip Poker…?

Joaquim – As Loucas Aventuras do Rabbi Jacob… O meu filme preferido… Mnham, mnham… Cheira tão bem! (Agarrando o ombro de Pedro) Tenho a certeza de que vamos simpatizar um com o outro… Além disso, a vantagem dos convites entre vizinhos é que não temos que nos deslocar de carro… Temos todo o tempo… e não nos arriscamos a ter que soprar o balão!

Pedro – Diga-me Joaquim… Posso tratá-lo por Joaquim?

Joaquim – Claro que sim, Pedro. Entre vizinhos…

Pedro – Você é tão simpático. Tinha uma pequena proposta para lhe fazer. Eu e a minha mulher…

Joaquim (intrigado) – Sim?

Pedro – Já ouviu falar de… swing?

Joaquim (siderado) – Vagamente…

Pedro – Pois bem, a minha mulher e eu… Claro, se quiserem… Não se sintam obrigados, ok? Em geral, fazêmo-lo entre a sobremesa e o café… Por isso, se não estiverem interessados… Basta-vos sair quando servirmos os queijos. Nós compreenderemos…

Joaquim fica atrapalhado. Carmo regressa.

Carmo – Pronto! Vamos poder passar uma noite tranquila… só os quatro…

Carmo repara no mal-estar de Joaquim.

Carmo – Não te sentes bem?

Joaquim – Sinto-me bem, sim… Estávamos a falar… do comércio livre. Da globalização, das deslocalizações… Sabem que a minha mulher também é adepta do swing?

Carmo (rectificando, incomodada) – Do comércio livre…

Maria chega da cozinha com o porco com ameixas.

Maria – Pronto, se não têm nada contra a carne de porco, podemos passar à mesa…

Sentam-se à mesa num silêncio embaraçoso.

Maria – Carmo, fica à direita do meu marido…

Carmo obedece sob o olhar inquieto de Joaquim. Maria serve os convidados.

Carmo – A carne está com um aspecto muito apetitoso…

Maria prepara-se para servir Pedro.

Pedro – Não quero, obrigado…

Maria – Não tens fome?

Pedro – Nem por isso… E a carne sempre me causou um pouco de repugnância. A vocês não…?

Joaquim e Carmo olham para boquiabertos.

Pedro – Sabem que, geneticamente, o porco é o animal que mais se aproxima do homem? Efectivamente o homem só tem alguns genes diferentes dos do porco. E poucos…

Os convidados, desmotivados com a conversa, comem com menos apetite. Maria muda de assunto.

Maria – E você, Carmo? Não nos chegou a dizer o que faz…

Carmo – Tenho sempre algum receio em dizer o que faço… Nos tempos que correm não é muito bem visto…

Pedro – Faz strip-tease… ou é mecânica numa garagem?

Carmo – Pior… Sou… (Enfática) Cost Killer.

Incompreensão por parte de Pedro e Maria.

Joaquim – Estratégia empresarial…

Maria – E isso é exactamente o quê?

Carmo – É assim… Como consultora, sou chamada por empresas em dificuldades financeiras para cortar os ramos mortos e deixar que os novos possam florescer livremente…

Maria (impressionada) – Parece-me interessante…

Joaquim – A minha mulher faz cair as cabeças! É uma espécie de Marquês de Pombal nas perseguições que fez. Uma pasionaria do swing.

Carmo (rectificando) – Do comércio livre…

Joaquim – Sim… Com certeza…

Maria – E quais foram as cabeças que últimamente decidiu cortar com a serra eléctrica?

Carmo – Até agora, foram sobretudo empresas privadas que requisitaram os meus serviços. Mas recentemente estou a ser solicitada pelo sector público. Aliás, acabam de me confiar uma nova missão…

Maria – Por favor tranquilize-me! Não vão atacar a Educação… Porque, se assim for, presumo que começarão por guilhotinar os professores de solfejo…

Carmo – Não se ria, porque mais cedo ou mais tarde acontecerá. Mas não, desta vez trata-se de um outro elefante branco que tenho que desmembrar.

Maria – Não se trata do Partido Socialista, pois não?

Carmo (com ar satisfeito) – A Biblioteca Nacional.

Pedro sufoca.

Pedro – A Biblioteca Nacional…!

Carmo – Nem preciso dizer que isto fica aqui entre nós… Começo amanhã de manhã e ainda ninguém sabe. Farei uma selecção dos empregados e não ficarão senão os elementos mais produtivos… Os outros serão substituídos por computadores…

Joaquim – A minha mulher é uma assassina. Quando tiver acabado com a Biblioteca Nacional, metade do pessoal terá sido eliminado… pelo menos!

Maria fica sem voz e Pedro quase desmaia.

Carmo – Mas estou a chatear-vos com isto tudo… O vosso porco com ameixas está excelente. Dá-me a receita?

Joaquim levanta-se.

Joaquim – Dão-me licença? Tenho que ir à casa de banho antes de atacarmos a sobremesa… Deve ter sido das ameixas…

Carmo – E eu aproveito para ir ver se as crianças não estão a ver porcalhonices nos canais porno. Não estão no nosso pacote mas às vezes dá para ver…

Enquanto Joaquim e Carmo saiem.

Pedro (desgraçado) – Já viste que bom… Vou estar na primeira linha para o cadafalso…

Maria – Se não te tivesses vangloriado de ser pago para não fazer nada… (Imitando-o) É mesmo preciso ser um bom comediante…

Pedro (possuído) – Espera lá, como é que eu podia adivinhar que ela era uma cortadora de cabeças? Com aquele ar inofensivo… E, relembro-te, foste tu quem a convidou! Se me tivesses dito que a mulher do Pol Pot vinha jantar cá a casa hoje, teria desconfiado…

Maria – Agora já nem sei muito bem como é que podemos encarrilar…

Pedro – Sobretudo porque propus ao marido uma troca de casais para a sobremesa…

Maria – Desculpa?

Pedro – Era para eles se porem a andar mais depressa…

Maria (chateada) – Obrigadinha, foi muito simpático para mim… Assim, não só vai pensar que és um parasita como também um tarado sexual… E se aceitassem…

Pedro – Só falei disso ao marido… E olha que ele ainda não disse que não… Só que agora é preciso fazer de tudo para que não se vão embora e tentar recompor as coisas…

Maria, à beira de uma crise de nervos, acende um cigarro.

Maria – Acho que hoje não é o dia certo para deixar de fumar.

Maria inalou avidamente uma bafurada.

Maria (voluptuosamente) – Ai que bom…

Pedro olha para ela, perturbado, mas aguenta-se.

Pedro – Ouve lá, ao ponto a que chegámos, só vejo uma solução…

Maria – O gás, como os vizinhos da frente…?

Pedro – Ela ainda não sabe que eu trabalho na Biblioteca Nacional… Durante o resto da noite, temos mesmo de arranjar alguma coisa que a comprometa …

Maria – E como é que pensas fazer isso? Não me vais com certeza pedir que aceite a proposta indecente que fizeste ao marido dela, para podermos fazer chantagem e assegurar o teu emprego?

Pedro – Não, se pudermos evitar… Para já podíamos fazê-la beber… Essa aí deve ter alguma coisa a esconder… com o seu ar de não me toques.

Maria – Fazê-la beber? Achas mesmo que isso será suficiente para ela subir para cima da mesa e fazer-nos uma confissão pública, do tipo Revolução Cultural? Não, para a obrigar a falar… Tirando meter-lhe a cabeça no forno, não vejo nada… Era preciso que eu a atraísse à cozinha enquanto tu neutralizarias o marido…

Pedro – Uma confissão pública… Tenho uma ideia…

Maria – Qual…?

Pedro – Strip Poker!

Maria – Queres propor-lhes um strip poker ?

Pedro – Strip Poker, a emissão da TVCabo! Quando ela já tiver bebido bem, propomos uma partida.

Maria (inquieta) – Que género de partida?

Pedro – Como castigo, aquele que perder deve responder a uma pergunta indiscreta. Um jogo da verdade, em suma! Ela gosta de luta, tenho a certeza de que com uns copitos a mais vai aceitar…

Maria (inquieta) – A verdade é que eu nem sei jogar bem ao poker…

Pedro – Tens coisas a esconder?

Maria – Não especialmente, mas…

Pedro – Então?!

Joaquim e Carmo regressam.

Joaquim – Agora já estou melhor!

Maria – Óptimo, assim podemos passar à sobremesa…

Embaraço de Joaquim.

Joaquim – Já começa a ser tarde, não acham? Se calhar não vamos incomodá-los muito mais tempo…

Carmo (admirada) – Por amor de Deus, Joaquim, não vamos sair como se fossemos ladrões…

Pedro (repentinamente amável) – Mas não incomodam nada! Depois podemos fazer um jogo de sociedade… Gostam de jogos de sociedade?

Carmo – Agora tocaram no meu ponto fraco! Sou uma jogadora… não sou, Joaquim?

Escuro.

 

ACTO 3

 

Ambiente de casa de fumo. Estão os quatro sentados, beata na boca e um pouco descompostos, numa mesa de poker iluminada por um candeeiro, como nos filmes. Sob o olhar impressionado de Joaquim e Carmo, Maria baralha as cartas com a virtuosidade de um croupier de casino.

Pedro – Como não temos fichas jogamos com botões, ok? Então não há dúvidas? No fim de cada partida aquele que tiver mais botões tem o direito de fazer uma pergunta ao que tiver menos…

Os outros opinam.

Joaquim – Enquanto não forem os botões das calças. Tirando o que está por baixo, nada tenho a esconder.

Pedro – Todos temos qualquer coisa a esconder… Se procurarmos bem… O que é preciso é escolher boas perguntas…

A atmosfera fica mais pesada. Os quatro jogadores apostam. Joaquim corta. Maria dá as cartas.

Pedro – Posso servir-vos um digestivo…?

Carmo – Porque não? Um pequeno excesso de vez em quando…

Joaquim – Se calhar não é muito aconselhável, não acham? Sabem que agora podemos ser condenados de deixarmos os nossos convidados partir quando estão a cair de bêbados…

Pedro – Mas foram vocês que disseram que não vão conduzir. Moram mesmo aqui em frente…

Joaquim – Ao lado…

Pedro – Assim sendo nem sequer se arriscam a ser atropelados ao atravessarem a rua… Mas, se preferirem, podem ficar a dormir connosco…

Ar embarrassado de Joaquim.

Carmo (despejando o copo de uma só vez) – Hum… Sabe mesmo a pera…!

Sorriso forçado de Joaquim. Maria acaba de dar as cartas. Cada um olha para o seu jogo e observa os outros.

Pedro – Duas cartas…

Maria dá-lhe as cartas.

Carmo – Três…

Joaquim – Uma…

Maria – Estou bem…

Voltam todos a olhar para os seus jogos. Entreolham-se. E falam, cada um de cada vez.

Pedro – Saio…

Joaquim – Eu também…

Carmo – Aposto mais dois.

Maria – Pago para ver…

Carmo mostra o jogo com uma excitação infantil.

Carmo – Poker de Ases! Quem tem mais?

Maria (desfeita) – Trio de valetes…

Carmo apanha as apostas. Cada um olha para os botões que lhe restam.

Carmo – Sou eu a fazer uma pergunta…

Mal-estar dos outros, enquanto contam os seus botões. Maria, que é quem tem menos, fica com cara de caso.

Carmo – Portanto é para a Maria!

Alívio de Pedro e Joaquim.

Carmo – A Maria tem que dizer-nos a verdade…

Maria (inquieta) – Força…

Carmo – Já alguma vez roubou numa loja?

Maria até fica aliviada.

Maria – Sim… Uma vez… Uma tenda…

Carmo – Uma tenda…?

Maria – Sim, uma tenda de campismo!

Joaquim – Que coisa… Nunca me passaria pela cabeça roubar uma coisa dessas! Uma tenda de campismo dá nas vistas, não?

Carmo – Uma tenda…? Foi… Por necessidade? Não sabia onde dormir…

Maria – Foi para ir acampar! Estava num centro comercial… Fui a uma caixa para pagar. Disseram-me que era noutra caixa. Fui à procura da caixa certa e quando dei por mim tinha passado pelos pórticos de segurança sem dar por isso. E estava na rua…

Pedro – Não foi propriamente um roubo… Porque não tinhas intenção de roubar essa tenda…

Maria – Digamos que não voltei atrás para pagar… Na verdade tive medo que voltando a passar nos pórticos o alarme disparasse. Seria demasiado estúpido ser apanhada ao tentar reentrar na loja com uma tenda que acabara de roubar inadvertidamente… Imaginam-me a explicar isto aos seguranças? Normalmente não são muito imaginativos…

Os outros ficam com cara de quem imagina a situação.

Carmo – Foi mesmo a única vez?

Maria – Sim…

Carmo – Então pode dizer-se que você é uma mulher honesta…

Maria – Sabe uma coisa, a maioria das pessoas só são honestas porque não têm corgem para ser desonestas… Digamos que o risco nunca me pareceu proporcional à satisfacção que o roubo me poderia dar…

Joaquim (já com os copos) – Como enganar o marido?

Maria – Isso é uma nova pergunta…

Joaquim – Tem razão…

Começa uma nova partida. Mesma preparação. Apostam. É a vez de Pedro dar.

Carmo – Uma carta…

Joaquim – Estou bem…

Maria – Eu também…

Pedro – Duas cartas…

Apostam de novo.

Carmo – Estou em jogo…

Joaquim – Eu também…

Maria – Saio…

Pedro – Pago para ver…

Mostram os jogos.

Pedro (triunfante) – Full!

Joaquim – Sequência de cor!

O sorriso de Pedro fica gelado. Maria olha-o ironicamente.

Maria – Isto começa bem…

Joaquim apanha as apostas.

Joaquim – É a minha vez de fazer uma pergunta…

Os outros três, na defensiva, contam os seus botões.

Joaquim – É para o Pedro…

Ar resignado de Pedro.

Joaquim – Já alguma vez teve vontade de matar alguém?

Pedro – Quer dizer antes desta noite?

Joaquim – Com uma acção prévia de passagem ao acto propriamente dito, claro

Carmo – Senão não conta.

Joaquim – Se prendessem todos os maridos que têm vontade de matar as suas mulheres pelo menos uma vez por semana… As prisões estariam sobrelotadas…

A mulher dele lança-lhe um olhar fulminante. Pedro tenta lembrar-se.

Pedro – Não, não estou a ver… (Rindo) Ah sim… Enfim, não foi verdadeiramente premeditado, mas… Foi no 2º ciclo… Havia uma miúda de óculos que me estava sempre a chatear. Um dia, na piscina, atirámos os óculos dela para a água. Ela não sabia nadar. Mas, em pânico, esqueceu-se e lançou-se à água para recuperar os óculos. Nós divertíamo-nos à grande. Claro que, ao fim de cinco minutos, como ela não viesse à superfície, chamámos o nadador salvador… O que nós gozámos… Já nem me lembro o nome da pobre rapariga…

Carmo – Carmo Pimentel…

Pedro (petrificado) – Sim, talvez…

Carmo – A miúda dos óculos era eu…

Pedro – Não… !?

Carmo – Sabia, eu sabia muito bem que a sua cara não me era estranha…

Joaquim intervem para desanuviar o ambiente.

Joaquim – Bom… Mais uma partidinha?

Outra partida. Sem convicção. E num silêncio pesado. Carmo dá as cartas.

Joaquim – Saio.

Maria – Estou bem…

Pedro – Também saio.

Carmo – Aposto dez…

Maria – Jogo… E aposto mai dez…

Carmo (apostando) – Pago para ver.

Carmo e Maria mostram os jogos. Sorriso de satisfacção de Maria. Ar de derrota de Carmo.

Maria – Ah, desta vez sou eu a fazer uma pergunta… À Carmo…

Inquietação de Carmo.

Maria – Já alguma vez cometeu um erro profissional grave que não tenha confessado a ninguém?

Carmo fica muito mal. Dirige-se para a boca de cena como se fosse fazer uma confissão. Mas, em vez de falar, tira a camisola.

Escuro.

A luz acende-se de novo e Carmo continua na berlinda, na boca de cena. Percebe-se que perdeu outra vez.

Maria – Reitero a minha pergunta… Alguma vez cometeu um erro profissional grave…?

Carmo prepara-se para tirar a parte de baixo mas desiste e começa a falar com uma voz quase inaudível.

Carmo (muito baixo) – Sim…

Maria – Desculpe?

Carmo – Sim!

Maria – Qual?

Carmo – Pronto, vou contar. Mas isto não sai daqui… Prometem…?

Pedro e Maria acenam hipocritamente com a cabeça.

Pedro – Pense que está numa igreja e que nós somos o seu confessor…

O ambiente de fumo não podia estar mais pesado.

Joaquim (divertido) – Uma igreja…?

Maria – Ou uma sinagoga, se preferiem.

Carmo – Mas há confessionários nas sinagogas?

Pedro (perdendo a paciência) – Eu sei lá… Imagine-se onde quiser…

Carmo – Bem, então… Foi mais ou menos há seis meses. Durante uma das minhas missões, fiz demitir um quadro superior e a sua companheira. Trabalhavam ambos na mesma companhia, na companhia que eu estava a auditar. Eu tinha a certeza de que eles roubavam dinheiro da caixa. O tipo não aguentou. Trabalhava na empresa há vinte anos. Suicidou-se. Com a sua mulher…

Troca de olhares de satisfacção entre Pedro e Maria. Têm motivo para comprometer Carmo.

Carmo – Abrindo o gás…

Pedro (a medo) – Os vizinhos da frente…!

Carmo – Perdão?

Pedro – Não, nada…

Carmo – Logo depois do enterro, dei-me conta de que não eram culpados… Eu tinha simplesmente errado uma conta de somar… E não disse nada a ninguém… Não fiz nada para os reabilitar, pobres coitados… Estava demasiado envergonhada… (Em lágrimas) Normalmente não me engano nas somas…

Joaquim consola-a.

Joaquim (para Pedro e Maria) Ela fica sempre abalada quando se fala nisto… (Tentando consolar a mulher) Queres ir para casa, querida…?

Pedro e Maria trocam olhares coniventes.

Maria – Sim, já chega, talvez…

Carmo (recompondo-se) – Não, não, não quero estragar-vos a noite… Isto vai passar. E nunca se deixa uma partida de poker assim. (Com um ar inquietante) Ainda nem todos falaram…

Carmo esvazia o copo de uma só vez para esquecer os remorsos.

Pedro – Assim sendo…

Joaquim dá as cartas… Voltam a jogar em silêncio. O ambiente está cada vez mais pesado.

Maria – Carta…

Pedro – Estou bem…

Carmo – Vou a jogo…

Joaquim – Pago para ver…

Mostram as cartas.

Carmo – Tenho um par…

Joaquim – Trio…

Maria – Poker de damas…

Pedro (triunfante) – Poker de reis!

Mal-estar dos outros.

Pedro – Joaquim… Por acaso sabe o que aconteceu ao gato que esta manhã vi no caixote do lixo…

Estupefacção de Maria. Embaraço de Joaquim e de Carmo.

Pedro – Tem que dizer a verdade…

Joaquim dirige-se para a boca de cena como para uma confissão. Mas, em vez de falar, tira as calças e fica em cuecas.

Escuro.

A luz acende-se de novo e Joaquim continua na berlinda, na boca de cena. Percebe-se que perdeu outra vez.

Pedro – Então, o gato?

Joaquim prepara-separa tirar as cuecas mas Carmo responde por ele.

Carmo – Ele já me tinha comido três plantas verdes na varanda… Então, na véspera, reguei a quarta com arsénico.

Maria desata a chorar.

Pedro – Oh, meu Deus ! O gatinho está morto…

Mal-estar.

Joaquim (para aligeirar o ambiente) – Um último jogo? Para me refazer…

Carmo – Está bem, mas depois vamos todos deitar-nos.

Espanto dos outros não sabendo como interpretar esta última réplica.

Nova partida. Pingas. Maria dá de novo as cartas. Apostas. Rostos ainda mais tensos.

Pedro – Carta.

Carmo – Carta.

Joaquim – Estou bem.

Maria – Carta.

Joaquim aposta os botões todos.

Joaquim – Encavo!

Maria – Saio…

Pedro – Saio…

Carmo – Eu também…

Joaquim recolhe as apostas. A sua cara ilumina-se. Maria, horrorizada, constata ser ela quem menos botões tem.

Joaquim – Agora sou eu a fazer uma pergunta…

Maria (em pânico) – Mas você não nos mostrou o seu jogo…!

Joaquim – Não sou obrigado! Vocês desistiram todos!

Olha para os outros três, um por um, para manter o suspense.

Joaquim – É a Maria que tem menos botões… Por isso aqui vai…

Mal-estar de Maria.

Joaquim (sem piedade) – Alguma vez enganou o seu marido?

Maria fica calada. Pedro, inquieto, olha para ela.

Carmo – Todos nós jogámos o jogo. Você deve-nos a verdade…

Maria avança para a boca de cena e tira a camisola.

Escuro.

Luz.

Joaquim (sem piedade) – Já alguma vez enganou o seu marido?

Maria, cada vez mais incomodada, tira a parte de baixo e fica em combinação.

Escuro.

Luz.

Joaquim (sem piedade) – Já alguma vez enganou o seu marido?

Maria esboça um gesto para tirar a combinação e depois prefere falar

Maria – Uma vez… Só uma vez muito pequenina… Foi… um erro.

Pedro fica destroçado.

Carmo (cruel) – Um erro? Como com a tenda?

Maria – Sim, pode dizer-se que sim…

Joaquim – Mesmo assim… Uma pessoa não se engana de marido como se engana num número de telefone.

Carmo – E mesmo quando marcamos mal um número, podemos desligar antes da outra pessoa atender e começar a falar…

Maria – Digamos que não tive a presença de espirito para desligar o telefone na cara enquanto podia… Sou conversadora, ao telefone…

Carmo – E tinha contado ao seu marido antes desta noite?

Maria – Não…

Carmo – Porquê?

Maria – Consegui passar as barreiras de segurança antes do alarme tocar… e não tive coragem de voltar atrás para pagar a conta…

Mal-estar. Pedro e Maria evitam olhar um para o outro.

Joaquim – Bom… Se calhar vamos andando…

Pedro (para Joaquim) – Você fez bluff?

Joaquim, contente consigo próprio, mostra as cartas.

Joaquim – Só tinha um par pequeno…

Carmo e Joaquim levantam-se e preparam-se para ir embora.

Joaquim (para Pedro) – Eu também tenho uma pequena pergunta para lhe fazer…

Pedro – O jogo já acabou.

Joaquim – Mostrei-lhe o meu par…

Pedro – Vá lá, pergunte…

Joaquim – Você é mesmo comediante?

Pedro – Não, mas escrevo peças de teatro. Durante as horas de trabalho… na Biblioteca Nacional…

Carmo – Estou a ver… Posso contar com a vossa discrição…?

Pedro – A propósito dos vizinhos da frente…? Se disser no seu relatório que eu sou o empregado mais produtivo da casa e que em caso algum posso ser substituído por um computador…

Carmo encaixa o golpe.

Carmo – Não se importam que vá à cozinha buscar um copo de água? Não me sinto muito bem…

Maria – Com certeza, faça o favor…

Carmo afasta-se em direcção à cozinha.

Joaquim – A próxima vez convidamos nós… Jogaremos um Scrabble, para variar um pouco…

Carmo regressa.

Joaquim – Então até logo?

Pedro (para Carmo) – Até amanhã…?

Os vizinhos partem. Pedro e Maria mal ousam olhar um para o outro. O portátil de Maria começa a tocar.

Pedro – Não atendes?

Maria – Nem sei se é para mim ou para ti. Deste o meu número a todos os teus amigos…

Pedro – Porque tenho confiança em ti…

Embaraço de Maria.

Pedro (mais a sério) – Quem era… o teu número falso?

Maria – O Francisco…

Pedro – Essa agora… Nunca desconfiaria dele…

Maria abraça Pedro para lhe pedir perdão.

Maria – Então, sempre fazemos o strip-poker ?

Pedro – Encavo!

Música sugestiva. Ela começa um strip-tease. Ele olha para ela, animado. Senta-se para vê-la fazer o seu show e tira um charuto, preparando-se para o acender com um fósforo que tira duma caixa.

Um instante e vê-se aparecer a cara de Carmo que os espia… com uma máscara de gás da última guerra na cara. Depois Carmo desaparece.

Maria para de repente, ao mesmo tempo que a música.

Maria (inquieta) – Não achas que cheira a gás?

Ele faz sinal de ignorar e acende o fósforo para o charuto. Escuro seguido de um flash e de um barulho de explosão.

Fim

 

 

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Nascido em 1955 em Auvers-sur-Oise (França), Jean-Pierre Martinez fez as suas primeiras aparições em palco como baterista de diversos grupos de rock, antes de se tornar publicitário semiólogo. Depois de um período como argumentista para televisão, regressa aos palcos como dramaturgo. Escreveu uma centena de guiões para o pequeno écran e mais de sessenta comédias para teatro, das quais algumas já são clássicas. Hoje em dia é um dos autores contemporâneos mais representados em França e nos países francófonos. Por outro lado, muitas das suas peças, traduzidas em espanhol e inglês, estão regularmente em cartaz nos Estados Unidos e na América Latina. Jean-Pierre Martinez é diplomado em literatura espanhola e inglesa (Sorbonne), em linguística (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), em economia (Institut d’Études Politique de Paris) e em guionismo (Conservatoire Européen d’Ecriture Audiovisuelle). Foi sua a decisão de disponibilizar todos os textos das suas peças para download gratuito no seu site La Comédiathèque : http://comediatheque.net

 

Peça de Teatro do mesmo autor em português

Sexta-Feira 13 (Vendredi 13)

Uma herança pesada (Héritage à tous les étages)

Pode fazer-se download gratuito

de todas as peças de Jean-Pierre Martinez

no seu site : www.comediatheque.net

 

Todos os direitos de tradução,
adaptação e reprodução são reservados.
Este texto está protegido pelas leis
relativas ao direito de propriedade intelectual.
Qualquer reprodução fraudulenta está sujeita
a uma condenação de até 300 000 euros e 3 anos de prisão.

Paris – Janvier 2017

© La Comédi@thèque – ISBN 978-2-37705-075-8

www.comediatheque.net

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UMA HERANÇA PESADA

Comédia de Jean-Pierre Martinez

Tradução pelo próprio autor

14 PERSONAGENS

Distribuição de papéis (sugerida): 5H/9M

Muitos dos papéis podem ser masculinos ou femininos,

A distribuição por sexo pode variar muito:

3H/11M, 4H/10M, 5H/9M, 6H/8M, 7H/7M, 8H/6M, 9H/5M

António acaba de herdar de uma tia, da qual ele desconhecia a existência, um apartamento maravilhoso num dos melhores prédios pombalinos de Lisboa. Acabou de dar a volta ao apartamento com a sua companheira Clara. Mas os segredos de família são como as mentiras que têm perna curta…


Este texto é disponibilizado gratuitamente para leitura. Antes de qualquer utilização pública, profissional ou amadora, deve ser obtida autorização do autor : FORMULARIO DE CONTACTO


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Uma herença pesada 

Uma sala de visitas com uma imponente janela que dá para uma grande varanda de onde se vê o Tejo. Do outro lado um corredor por onde se chega à entrada. Os móveis e a decoração são velhos e kitch. Na parede principal um imponente quadro representando Salazar ainda novo.

António (fora de cena) – Espera que tenho que desligar o alarme. Se não o fizer em 30 segundos vamos acordar todo o prédio e mandam-nos prender como se fossemos ladrões… Bolas qual é o código… Ai… bolas… É o 1234.

Chega Clara. Entra na sala, olha à sua volta e exclama, num misto de admiração e susto.

Clara – Uau!

António (entrando na sala) – Tinha-te prevenido que tínhamos que remodelar o apartamento.

Clara – Falas como um agente imobiliário. Lembra-te que és o proprietário.

António – Ainda me custa a acreditar… Mas espera… Vem aqui ver.

Vão os dois juntos para a janela para contemplar a vista. Desta vez Clara fica maravilhada.

Clara – Uau!

António – Vais ver… Se nos debruçarmos um bocado na varanda até conseguimos ver o Rossio.

Clara – Pois, isto vai mudar a nossa vida. Lá de casa só conseguimos ver o cemitério.

António aproxima-se de Clara, abraça-a.

António – Então? Sempre concordas em passar hoje a tua primeira noite comigo neste apartamento?

Clara – Tudo isto é realmente muito excitante… Mas quero primeiro ver a cama da tua bisavó antes de te responder.

António – Não é a minha bisavó… É a minha tia-avó Lazarina.

Clara – A tua tia Lazarina? Mas que raio de nome… Isso é apelido?

António – Não, era o nome de baptismo da minha tia, irmã mais velha da minha avó.

Clara – A mãe do teu pai?

António – Da minha mãe, ao que parece.

Clara dá mais uma volta à sala.

Clara – E tu nunca a viste.

António – Eu nem sabia que a minha avó tinha uma irmã.

Clara – É de doidos.

António – O quê?

Clara – Que os teus pais nunca te tenham falado dessa tia Lazarina.

António – Pois é.

Clara – E agora herdas a casa dela.

António – Parece que sim, ela não tinha filhos. E como os meus pais já morreram o notário disse que eu era o único herdeiro.

Clara – Mesmo assim é triste, não achas? Durante todos estes anos ela vivia aqui, a dois quarteirões da editora onde trabalhas e tu soubeste da morte dela por um telefonema do notário…

António – Nem isso… quando recebi a carta do notário ela já tinha sido enterrada.

Clara (pegando numa moldura que está sobre a cómoda) – É ela?

António – Sim… Imagino que seja.

Clara – Era bem bonita… quando jovem.

António – Até era.

Clara – É só isso que sabes dizer?

António – O quê?

Clara – Sei lá… Ela já morreu… Nunca a vais conhecer… Só te resta uma fotografia…

António – E o apartamento!

Clara – E não te afecta saber que a tua tia morreu?

António – Ah sim, garanto-te que me afecta.

Clara – O quê?

António – Para te ser franco, tenho a impressão de ter ganho a lotaria.

Clara (voltando a por a fotografia no seu lugar) – É claro… e não vamos ter saudades do nosso T1 da Amadora.

António – Claro que não… Já viste que se acabam os comboios e posso ir a pé para o trabalho.

Clara – E eu também… O liceu nem fica longe.

António – Não teremos que pagar mais rendas. Na baixa de Lisboa. Um apartamento com uma bela varanda, no último andar, com elevador e tudo num belo prédio pombalino.

Clara – Pronto… Lá estás tu outra vez a falar como um agente imobiliário.

António – Até conseguiram fazer um parque de estacionamento no jardim das traseiras.

Clara – Mas nós nem carro temos…

António – Deves estar a brincar… Fazes ideia por quanto podemos alugar um estacionamento nesta zona?

Clara – Não, por quanto?

António – Não sei dizer-te exactamente, mas pelo menos por metade do meu ordenado. Ai isso com certeza.

Clara – Então podes alugar o estacionamento e passar a meio tempo. Assim poderás começar a escrever o teu primeiro romance. Não vais passar o resto da tua vida a publicar os livros dos outros.

António – Mas primeiro é preciso que encontre um assunto.

Clara – Olha, podias escrever a história desta misteriosa avó.

António – Tia-avó!

Clara – Uma mulher que devia ser quase centenária, que devia ter para aí uns vinte anos na segunda guerra mundial. Deve dar assunto para um romance.

Clara dá uma volta inspecionando mais uma vez a sala.

António – É verdade que o ar está pesado…

Clara – Eu diria mesmo um pouco assustador. Dir-se-ia que o fantasma de Lazarina anda pelo apartamento.

António – Se calhar é melhor chamar um exorcista para afastar as almas e fantasmas antes de nos mudarmos para cá.

Clara – Achas?

António – Começaremos por despachar todas estas velharias e depois pintaremos a casa toda.

Clara – Realmente a casa é um bocado sombria.

António (aproximando-se novamente da janela) – Sim… mas olha-me só esta vista… maravilhosa! E todos estes telhados que se vêm daqui…

Clara – E atrás de cada janela homens e mulheres com as suas histórias, os seus destinos.

António – É verdade… É muito romântico.

Clara – Lisboa…

António – Uma das mais belas cidades do mundo.

Clara – E das mais românticas.

António – Centenas de apartamentos como este. Milhares de pessoas e milhares de histórias que estão a ser escritas.

Clara – Sim… Consegues imaginar que neste momento haverá pessoas a fazer pedidos de casamento?

António – E outros em plena discussão sobre o divórcio.

Clara – Estão a nascer bebés um pouco por todo o lado.

António – E velhos a finarem-se como a tia Lazarina.

Clara – Algumas pessoas devem estar a lavar a loiça.

António – E outros a fazer amor…

E começam a abraçar-se. São interrompidos pela campainha da porta.

Clara – Quem é que poderá ser?

António – Sei lá… Não conheço ninguém neste prédio.

Clara – Será o fantasma da tia Lazarina?

António – Eu vou lá!

Clara – Queres que vá contigo?

António – Deixa estar… mas se eu não voltar dentro de cinco minutos chamas um exorcista, ok?

António sai e Clara fica parada à frente do quadro e, intrigada, examina-o.

António (off) – Ah sim… Não, de maneira alguma… Por favor entre.

António regressa seguido por Graziela.

Graziela – Não queria incomodá-los. Mas foi a porteira, a Dona Idalina, que me disse que o tinha visto subir com a sua mulher. (Dando-se conta de que Clara está na sala) Não sei se é sua mulher… Boa tarde menina.

Clara – Boa tarde minha senhora.

António – Clara, apresento-te a nossa vizinha Graziela Forte que é a administradora deste condomínio.

Graziela (com ar de circunstância) – Meu caro Senhor, em nome de todos os condóminos do prédio que tenho a honra de representar, por favor aceitem as nossas mais sinceras condolências.

António – Muito obrigado, mas sabe…

Graziela (interrompendo) – A sua tia era uma pessoa excepcional. Com o seu feito, é preciso dizê-lo. Mas encantadora. Todos os vizinhos eram muito ligados a Lazarina.

António – Fico muito feliz por sabê-lo.

Graziela – Para todos nós Lazarina era bem mais do que uma vizinha. Todos a ajudávamos quando era preciso, às vezes íamos às compras, ocupávamo-nos de coisas administrativas…

Clara – Ai sim?

Graziela – Resumindo, todos fazíamos os possíveis para ela se sentir menos sozinha. Recebia muito poucas visitas, como deve saber. Todos os dias a rodeávamos da nossa afeição. E ela retribuía muito bem, pode crer.

António – Ai sim… está… Está bem.

Graziela – Para Lazarina os vizinhos eram uma espécie de família. Aliás eu ignorava que ela tivesse outra… Pelo menos ela nunca nos falou disso.

António – Isso não me espanta… O que é verdade é que eu conhecia muito mal a minha tia Lazarina.

Graziela – Ah… Efectivamente não me lembro de o ter visto no enterro.

António – Para lhe dizer francamente eu…

Clara, já irritada com a conversa, intervém.

Clara – Penso que a senhora não veio apenas para conversar e nós não a queremos reter demasiado tempo. Deve ter alguma coisa para nos perguntar, não? Entre vizinhos… Um pezinho de salsa, sal, fósforos, um saca-rolhas.

António – Ou um quebra-nozes…

Graziela – Quanto ao saca-rolhas não andou longe… É um pouco embaraçoso… Devido às circunstâncias…

António – Desembuche.

Graziela (tossindo) – Desculpem… É como se tivesse uma rolha na garganta…

António – Quer beber alguma coisa?

Clara (lançando um olhar de reprovação ao companheiro) – Não sei se há alguma coisa que lhe possamos oferecer.

Graziela – Basta-me uma copo de água, obrigada.

Clara – Eu nem sei onde fica o frigorífico.

Graziela – Não se preocupe, posso beber água da torneira. Aqui no bairro ela é muito boa, hão-de ver. Não vão precisar de carregar garrafões de água mineral. Sobretudo quando se mora no último andar, como os senhores. Mesmo com o elevador… Há uma torneira na cozinha: a segunda porta à esquerda no corredor. E há copos no armário que fica mesmo em cima.

Clara sai para ir buscar o copo de água, um pouco chateada.

Graziela – Pronto, vou-lhe dizer o que me trouxe aqui… É que hoje é a festa dos vizinhos e desde que esta festa existe a sua tia sempre insistiu para que fosse organizada na sua casa.

António – A festa dos vizinhos…? Então era isso…

Graziela – Uma tradição, se quiser. Sem dúvida por causa do terraço ser tão grande e ter uma vista tão bonita sobre a cidade e o Tejo.

António – Claro…

Graziela – É preciso dizer que este é o apartamento mais bonito do prédio. E como Lazarina estava sozinha, sempre era uma companhia.

António – Mas, infelizmente, ela morreu, não é…

Graziela – Claro que sim… mas ficaria com certeza muito feliz de nos saber todos reunidos aqui uma última vez.

António – Quer dizer que… Nós não tínhamos previsto.

Graziela – Mas não tem que se preocupar com isso, nós tratamos de tudo como de costume… Quero dizer, como quando o fazíamos com a sua tia Lazarina.

Clara entra com um copo de água que dá a Graziela.

Graziela – Muito obrigada.

Clara – Por quem é… De nada.

Graziela (pousando o copo sem ter bebido) – Como eu estava a dizer ao seu marido.

Clara – Nós ainda não somos casados, se é isso que quer saber.

António (intervindo para quebrar a tensão) – A Senhora Dona Graziela veio convidar-nos para a festa dos vizinhos.

Clara – A festa dos vizinhos…? É… é muito amável da sua parte… mas quando é a festa?

Graziela – Bom… a festa é hoje.

António – E a ideia é que seja aqui em casa.

Clara – Em nossa casa? Porquê em nossa casa? Queres dizer aqui?

Graziela – Digamos que… seria uma espécie de festa de despedida.

António – Mas nós acabámos de chegar…

Graziela – Eu queria dizer de adeus. Adeus a Lazarina. Como não puderam assistir ao enterro…

António – Com certeza.

Graziela – Bom, então como estão de acordo, está combinado. Não sei como agradecer-vos…

António e Clara, apanhados de surpresa, trocam um olhar e sorriso forçado.

António – Não tem de quê… por favor.

Graziela – E… já agora… os senhores têm intenção de vir morar neste apartamento?

António – Hum… sim… Enfim…

Graziela – Então assim terão oportunidade de conhecer todos os vossos futuros vizinhos. Dois coelhos de uma cajadada.

António – E porque não.

Graziela – Pronto, vou andando. Ainda tenho coisas para fazer… para a festa, claro… Então até mais logo.

António – Até logo. (E preparando-se para a acompanhar à porta) Eu acompanho-a.

Graziela – Não se mace, conheço muito bem o caminho.

António – Está bem.

Graziela sai. António e Clara trocam olhares embaraçados.

António – Tenho a impressão de que ela não nos deu qualquer hipótese, não achas?

Clara – Achas? Tu também não te defendeste muito, pois não?

António – Tu deixaste-me sozinho com ela.

Clara – Mas foste tu que me mandaste ir buscar um copo de água à cozinha. Reparaste? Ela nem uma gota bebeu.

António – Ainda nem sequer aqui moramos e vamo-nos já zangar com os vizinhos?

Clara – Ok… Mas daí a termos que levar com eles logo no primeiro dia…

António – Tens razão… Ela enrolou-nos mesmo com a história da festa dos vizinhos.

Clara – Podes crer… Ainda por cima nunca ouvi falar desta festa.

António – Não?

Clara – E tu ouviste?

António – Também não!

Clara – Toda a gente sabe que no final de Dezembro só se festeja o Natal. Sabes ao menos isso?

António – Mas que ideia mais estúpida… Porque será que eles festejam os vizinhos no mês de Dezembro?

Clara – Isto parece-me uma marosca… Assim como ser em nossa casa… Isto começa bem… Promete!

António – Bem… vejamos o lado bom das coisas. Isso vai-nos permitir conhecer todos os vizinhos de uma só vez.

Clara – Mas não era urgente. Acabámos de chegar…

António – Mas o que é que tu queres. Agora somos coproprietários. Isso implica alguns incómodos.

Clara – Tu és coproprietário!

António – Seja como for teremos que nos dar com eles para a gestão do prédio e a Graziela é a administradora. Eu não podia despachá-la.

Clara – Graziela Forte… Ela foi mesmo forte… Mais forte do que tu.

António – Mas já viste que isso nos poupa um jantar de boas vindas… Ela disse que tratam de tudo.

Clara – É verdade que eles parecem ter uma desagradável tendência de se ocuparem de tudo, incluindo das coisas que lhes não dizem respeito. Não sei porquê mas esta copropriedade cheira-me a esturro.

António – Logo se verá… Se não forem simpáticos nunca mais os convidamos.

Clara – Mas foram eles que se auto convidaram.

António – Vá lá… Não vamos discutir por tão pouco.

António abraça Clara.

Clara – Tens razão… O principal é que finalmente estamos na nossa nova casa.

António – E se continuássemos a dar a volta do proprietário?

Clara (livrando-se do abraço e voltando-se para o quadro) – Ele dá ares ao Salazar, não achas?

António – Com as fatiotas da época eram todos muito parecidos. Mas parece um pouco jovem, não?

Clara – O Salazar também foi novo.

António – É verdade… Temos dificuldade em pensar que as pessoas importantes não nasceram todas como as conhecemos… Que o rei Dom Carlos foi um jovem imberbe, o Marquês de Pombal um adolescente cheio de borbulhas e Salazar um bebé com bochechinhas.

Clara – De qualquer maneira esta pintura não é de um mestre… Mesmo com uma moldura de tão boa qualidade.

António – É pena… Ajudaria bastante a pagar o imposto sucessório.

Clara – Imposto sucessório?

António – Este apartamento não vai ficar de borla. Tratando-se de uma parente afastada o imposto é bastante elevado. E a tia Lazarina não deixou nem um euro no banco… Só mesmo o andar.

Clara – E esse imposto será de quanto?

António – O notário ainda não me disse a quantia certa. No pior dos casos, peço um empréstimo ao banco. Sempre será melhor que pagar uma renda.

Clara – Não sei porquê mas começo a perguntar-me se tudo isto vai ser tão simples como pensámos.

António – Queres que te mostre o terraço?

Clara (com um ar atrevido) – E se me mostrasses primeiro o quarto?

António – Ok…

Ele segura na mão dela e vão enamorados pelo corredor. Mas, uma vez mais, a campainha toca.

Clara – Outra vez?

António – Deixa tocar… Não somos obrigados a abrir.

Clara – Acabas de convidar o prédio todo para a Festa dos Vizinhos… Não os podemos deixar lá fora.

António – Achas que já são eles?

Clara – Quem é que pensas que poderá ser? O Pai Natal?

António – Vou abrir…

Clara – Deixa estar… Agora vou lá eu… Eu trato disso.

António (um pouco inquieto) – Ao menos tenta ser amável.

Clara – Vou ser a dona de casa ideal, prometo.

António – Ok.

Clara sai. António fica na sala e suspira. Intrigado é agora ele que olha para o quadro. O telefone fixo, um modelo já antiquado, toca. António hesita e atende.

António – Estou… Sim, é aqui. Não, sou o sobrinho neto… A Festa dos Vizinhos? Ah, sim, é mesmo aqui. Pronto, de acordo, até já.

Desliga o telefone. Clara chega com Graziela que traz um alguidar de sangria e com a D. Sara Curado que traz uma tarte.

Graziela – Aqui está a sangria.

Sara Curado – Boa tarde, boa tarde… Eu fiz uma tarte de cebola.

Graziela – O ano passado era de alhos franceses, não?

Sara Curado – Obrigada… Eu tinha dito que mudaria. E para ser sincera não tinha alhos franceses em casa. Espero que gostem de cebola.

Graziela – Oh Doutora, toda a gente gosta de cebolas. Ainda por cima as cebolas são óptimas para a saúde. Eu ponho-as em tudo.

Sara Curado – Espero que não tenha posto na sangria.

Ambas riem à gargalhada e António e Clara olham-nas aterrorizados.

Graziela – Oh mas que esquecimento. Apresento-vos a Doutora Sara Curado que tem o consultório aqui por baixo. Confessem que é muito prático ter um médico no prédio. Também temos um dentista mas agora está morto… Quero dizer, está reformado desde o mês passado e foi para a terra. O seu substituto ainda não chegou.

Sara Curado – Meus senhores, muito prazer.

António – Doutora…

Sara Curado (interrompendo) – Por favor trate-me por Sara. Mas eu não sei se ouvi os vossos nomes.

Clara – Clara.

António – E eu sou António.

Sara Curado – Minha querida Clara, se fizesse o favor de tirar as coisas de cima da mesa para podermos instalar os comes e os bebes.

Clara tira tudo o que está sobre a mesa.

Sara Curado – António, se não lhe der muito trabalho, deve haver uma toalha ali naquele móvel. Sempre fica melhor com uma toalha.

António abre o armário mas parece não encontrar a toalha.

Sara Curado – Mesmo no fundo.

António tira a toalha e estende-a sobre a mesa. Graziela pousa o alguidar da sangria e Sara Curado a tarte.

Graziela – Pronto… Assim os convidados vêm servir-se aqui na sala. A propósito não sei o que estarão a fazer… Já cá deviam estar… Mas se quiserem ir para o terraço enquanto esperamos.

António – Está bem.

Sara Curado – Afinal de contas estão em vossa casa.

Clara – Obrigada por no-lo relembrar.

A campainha toca mais uma vez.

Sara Curado – A Graziela já estava a dizer mal deles e, por uma vez, chegam a horas.

Graziela – Eu vou abrir… Mas depois deixo a porta entreaberta porque senão não vamos fazer outra coisa… toda a tarde a abrir a porta.

Graziela sai. Troca de sorrisos um pouco amarelos.

Sara Curado – Fui eu que assisti a vossa tia nos seus últimos momentos.

António – Ai sim. Infelizmente eu não tive o prazer… Quero dizer…

Clara – E… ela morreu de quê?

Sara Curado – Meu Deus, sabem… Depois dos noventa anos… será preciso morrer de qualquer doença em particular? O importante, e isso posso assegurar, ela não sofreu.

Chega o casal Grude, ele com uma salada de atum e ela com uma couve-flor gratinada. Logo atrás vem Graziela.

Sérgio Grude – Boa tarde, desculpem não vos apertar a mão mas estou com ela ocupada. Onde é que posso pôr isto?

Melissa – Não vês a mesa mesmo à tua frente… aliás, como sempre…

Pousam os pratos e viram-se para António e Clara.

Sérgio Grude – Sérgio Grude, agente de seguros. Esta é a minha esposa Melissa.

Melissa – E os senhores devem ser António e Clara.

Clara – Sim, somos… Aqui as novidades sabem-se depressa pelo que vejo.

Sérgio Grude – No tempo do Salazar, para serem porteiros deste prédio, a Idalina e o marido tinham que ser da situação ou até mesmo agentes da PIDE.

Melissa – Fiz uma salada russa com atum e uma couve-flor gratinada.

Sérgio Grude – Espero que gostem de couve-flor.

Melissa – Porque é que dizes isso?

Sérgio Grude – Porque eu detesto couve-flor… e tu sabes.

Melissa – Foi por isso que fiz também a salada. Mas a couve-flor faz muito bem e estamos no tempo dela. O António gosta?

António – Desculpe, estava distraído… Gosto de quê?

Melissa – De couve-flor.

António – Sim, mais ou menos.

Sérgio Grude – Não sabia que havia uma época para as couves-flores, pensava que havia todo o ano.

Melissa – São gratinadas com queijo parmesão. É excelente, vão ver. E muito boas para a saúde, não é Doutora?

Sara Curado – O que lhe posso dizer é que na minha já longa carreira nunca tive nenhum caso de morte por ingestão de couve-flor gratinada com parmesão.

Sérgio Grude – Isso porque nenhum dos seus doentes provou a da minha mulher.

Melissa lança um olhar fulminante ao marido.

Sérgio Grude – Não vês que estou a brincar, Melissa… Estamos aqui para nos divertirmos… entre vizinhos.

Clara – Sim… e a coisa promete.

O telefone fixo volta a tocar. Antes mesmo que António tenha tempo de reagir, Graziela atende.

Graziela – Sim, estou… Ai é o senhor Padre Santos… Sim, sim, compreendo… Não, não há qualquer problema, esperamos pelo senhor. De acordo, então até já.

Graziela desliga o telefone sob o olhar estupefacto de António e Clara.

Graziela – Era o Padre Santos. Ele atrasou-se porque teve que ir dar uma extrema-unção de urgência mas já vem ter connosco.

Clara – O Padre Santos?

Graziela – Sim, eu sei… é um nome predestinado. O Padre Santos é realmente um santo homem.

Sérgio Grude – Ele mora no rés-do-chão desde que a sua igreja foi vendida pelo bispo a um casal homossexual para fazerem um hostel que aceita gays.

Sara Curado – Parece que a Igreja está em crise, também ela… e até já está a vender as joias de família.

Graziela – Nem sabe a verdade que acaba de dizer. Infelizmente de hoje em dia há alturas em que temos a impressão de viver no reino de Sodoma.

Pausa

Sara Curado – Posso servir-vos qualquer coisa… só para começarmos.

Sérgio Grude – Vamos, a festa vai começar.

Graziela – Quem quer sangria?

Melissa – Eu quero.

Graziela – Muito bem… Então sangria para todos!

Sérgio Grude – Pelo menos para a sangria não precisamos de saca-rolhas.

Gargalhada geral, excepto de António e Clara que se esforçam por sorrir trocando entre si um olhar inquieto.

Sara Curado – É uma piada nossa porque a Lazarina nunca sabia onde tinha o saca-rolhas.

Graziela – Nos últimos tempos a vossa tia já não estava lá muito bem da cabeça, sabem…

Sara Curado – Com quase cem anos é normalíssimo já não ter uma memória muito fresca… tirando isso ela ainda estava muito bem para a sua idade, podem crer

Clara – Resumindo, ela morreu cheia de saúde, não é Doutora?

Momento de embaraço, interrompido pela chegada do Padre Santos, acompanhado pela Baronesa de Pedrógão.

Padre – Boa tarde a todos e as boas vindas aos novos proprietários.

Sérgio Grude – Ah … eis que chega o senhor Bolacha.

António – Boa tarde Senhor Bolacha.

Gargalhada de todos os vizinhos.

Sara Curado – Eles são impagáveis.

Graziela – Não liguem, é mais uma piada que só nós entendemos – todos os anos, sistematicamente, o padre Santos chega à Festa dos Vizinhos com um pacote de bolachas.

Padre – E ei-las… Não quis quebrar a tradição.

Tira da algibeira um pacote de bolachas que pousa na mesa, antes de dar um aperto de mão a António e Clara.

Padre – Sou o Padre Santos. E esta senhora é a Baronesa de Pedrógão.

Melissa – Que, como de costume, não traz nada… presumo.

Pequena pausa.

Baronesa – De qualquer maneira há sempre comida a mais. E cada um acaba por se ir embora com os seus restos. Mais vale comer os restos.

Nova gargalhada geral.

Graziela – Acho que nos vamos divertir imenso.

Padre – Sem esquecer que este ano a Festa dos Vizinhos tem para todos nós um significado muito especial.

Graziela – É verdade, desculpem… Por momentos esqueci-me que a pobre Lazarina nos deixou.

Padre – Sim, é muito comovente estarmos todos reunidos em casa dela esta tarde. Tenho a impressão de que ela vai entrar por aquela porta a qualquer momento, para nos trazer aquele suculento bolo de nozes do qual se recusava a dar-nos a receita.

Melissa – A vossa tia gostava muito de segredinhos.

António – Não sou eu quem vai dizer o contrário. Ela conseguiu mesmo esconder-me a sua existência.

Padre – Tive o privilégio de ministrar os últimos sacramentos à vossa tia antes de Deus a chamar a si. Podem ficar tranquilos pois ela não partiu sem ajuda da religião.

António – Ah sim… Isso é muitíssimo confortante.

Clara – Então concluo que Lazarina era muito crente.

Padre – Crente? Eu diria mesmo beata, sem ofensa, claro.

Graziela – Quando via na televisão as Paradas Gay, acreditem que ela nunca deixava de fazer um comentário. Tinha uma aversão profunda aos homossexuais.

Clara – Tinha?

Consternação de António e Clara.

Sara Curado – Tinha sim… Belos tempos…

Melissa – Quando nos juntávamos todos para defender os nossos valores comuns.

Graziela – E para fazermos um piquenique no parque Eduardo VII, regado com o excelente vinho de missa, não é senhor Padre?

Padre – Acho que a Lazarina teria desejado que este ano celebrássemos este dia num belo convívio. (Levanta o copo) À memória dessa mulher excepcional.

Todos levantam os copos, fazem uma saúde e bebem. A entrada da gótica Ângela arrefece o ambiente.

Graziela – Eis meus amigos a nossa vizinha.

Ângela – Boa tarde velhotes. Há alguma coisa que se beba? Já me está a faltar uma pinga.

Graziela – Ângela é pintora e tem o atelier aqui no prédio.

Sara Curado – A Melissa não se importa de servir um copo de sangue à menina Ângela?

Melissa – A minha amiga quer certamente dizer sangria.

Sara Curado – Não foi isso que eu disse?

Melissa serve um copo de sangria à pintora que o emborca e bebe de um trago só, sob o olhar reprovador de todos os vizinhos.

Ângela – Estava mesmo com sede.

Clara – E que estilo de quadros é que pinta, Ângela? Abstracto? Figurativo?

Ângela – Presentemente estou no meu período encarnado.

António – Muito bem… Como o Picasso, não?

Ângela – Não, não… Pelo menos eu… queria dizer que neste momento só carburo com vinho tinto… Se não bebo pinto muito pouco.

Risos forçados de todo o grupo.

Graziela – Vocês sabem como são os artistas…

Padre – E se passássemos para o terraço?

Sérgio Grude – Boa ideia.

Saem todos para o terraço deixando na sala apenas António, Clara sozinhos com Angela.

Ângela – Não tenham receio, contrariamente ao que possa parecer, não sou uma vampira. Se aqui há alguém que bebe sangue são eles.

Clara – Está a falar a sério?

Ângela – Sabem como é que a vossa avó morreu?

António – Era minha tia-avó… Já era muito idosa. Para ser sincero nem pensei nisso.

Ângela – A Lazarina estava em plena forma, acreditem. Ela teria chegado facilmente aos cem anos.

Clara – Ou muito me engano ou há aí uma pequena suspeita…

António – Alguém tinha razões de queixa da minha tia?

Ângela (esquivando-se a responder) – Gostam deste quadro?

António – Meu Deus… é muito banal e pretensioso, não acha?

Ângela – Foi pintado por mim.

Clara – Não, ele até é muito bom… Até consigo perceber qualquer coisa de…

Ângela – Não se canse. Foi apenas uma encomenda da Lazarina.

António – A sério?

Clara – Será o seu apaixonado dessa época?

Ângela – De qualquer maneira, para o fazer, ela deu-me uma fotografia do Salazar quando jovem. Penso que ela o terá conhecido.

A Baronesa regressa.

Baronesa – Não se preocupem comigo.

A Baronesa enche o seu saco com algumas das vitualhas que estão sobre a mesa. E depois serve-se de um copo de sangria que leva aos lábios com ar de repugnância.

Baronesa – Sangria… é tão vulgar…

A baronesa regressa ao terraço.

Clara – Ela é mesmo baronesa?

Ângela – Efectivamente não sabemos se ela tem mesmo esse título ou se tem esse apelido por ter nascido em Pedrógão.

Pausa.

Clara – Mas sabe algo sobre a morte da tia do António que nós devêssemos saber?

António – Eu pensava que ela tinha morrido de ataque cardíaco ou qualquer coisa do género.

Ângela – Não tenho a certeza absoluta mas aparentemente nem todos estão de acordo sobre as circunstâncias e causas da morte.

Clara – E quais são os cenários possíveis?

António – E eu a pensar que ela tinha morrido na cama aqui em casa.

Ângela – Cinco andares.

Clara – O elevador podia estar avariado… e se ela subiu a escada, com a sua idade, o coração poderá ter falhado.

Ângela – Tendo em conta o estado do corpo quando ela foi encontrada, ela não parece ter descido de elevador.

António – Ah sim?

Ângela – Segundo a Dona Idalina, a porteira, não era uma cena bonita de ver. Vocês nem a teriam reconhecido.

António – Tanto mais que eu nunca a vi.

Clara (sonhadora) – Uma queda? Do terraço?

António – Mas a balaustrada é suficientemente alta para que pudesse cair. A menos que a tenha saltado voluntariamente.

Ângela – Ou que alguém a tenha ajudado a saltar.

Clara – Um homicídio? É uma acusação muito grave.

António – Já não percebo nada. A Doutora Sara Curado disse-me que tinha acompanhado a minha tia nos seus últimos momentos de vida.

Ângela – Em todo o caso foi ela quem assinou a certidão de óbito, o que explica que não tenha havido qualquer inquérito. De qualquer maneira, com mais de noventa anos já não interessa à polícia.

Clara – Mas isso é monstruoso.

Ângela – Acho que também vou apanhar ar no terraço. Mas se me encontrarem no pátio saberão que não foi um suicídio.

Ângela sai. António e Clara trocam olhares aterrorizados.

António – Começo a interrogar-me se esta herança é tão boa como parece.

Clara – Se calhar é invenção dela.

António – De quem?

Clara – Dessa Ângela! Ela tem um ar meio esquisito.

António – Digamos que ela não é muito normal.

Clara – Mas como os outros também parecem não bater lá muito bem… Tu achas que eles podem ter assassinado a tia Lazarina?

António – E porque teriam feito isso? Até parece que gostavam muito dela.

Clara – É o que eles dizem… Quanto ao padre, é curioso, a sua cara não me é estranha.

Joe, travesti, chega sem que eles deem por isso.

Joe – Boa tarde.

Assustados, eles dão um salto.

Clara – Olhe que me pregou cá um susto.

Joe – Desolada… A porta estava entreaberta e por isso entrei. A Festa dos Vizinhos é aqui, não é?

António – Sim, é…

Joe – Vocês devem ser o António e a Clara.

Clara – E você quem é?

Joe – Sou Joe. Acabo de me mudar para o prédio. Sei, ou receio, que a minha presença seja uma espécie de nódoa no prédio. Aqui vivem sobretudo profissões liberais, aparentemente.

António – Então deduzo que não é nem advogada nem médica.

Joe – Contudo também eu trabalho a recibos verdes… No que diz respeito ao fisco, se me faço entender.

Sérgio Grude regressa à sala com Graziela e o Padre Santos.

Graziela – Mas o que é isto?

Joe – Sou a nova proprietária do segundo andar.

Graziela – Do segundo direito?

Joe cumprimenta Sérgio Grude com um beijinho.

Joe – Tudo bem, meu querido?

Sérgio Grude (atrapalhado) – Felizmente a minha mulher ficou lá fora.

Graziela – Mas esse apartamento está desocupado há anos.

Joe – Pois, mas já não está. A porteira disse-me que estavam a celebrar a Festa dos Vizinhos e como sou uma vizinha nova decidi que seria uma boa ocasião para…

Sérgio Grude – Fez muito bem!

Melissa (voltando à sala) – O que é isto?

Sérgio Grude – Cara senhora, apresento-lhe a minha mulher Melinda.

Melissa – Chamo-me Melissa!

Sérgio Grude – É verdade, desculpa. Melinda é a minha secretária e faço sempre esta confusão.

Joe – Boa tarde Melissa, prazer em conhecê-la. Não se importa que a trate por Melissa, espero.

Melissa – Minha senhora, permite-me que a trate por senhora?

Joe – Por favor, chame-me Joe.

Melissa – Joe é o diminutivo de?

Joe – Não, não… o meu nome é mesmo Joe.

Melissa – Só Joe… Estou a ver… Prefere manter um pouco de mistério.

Sérgio Grude – De qualquer maneira contamos consigo para dar a esta festa um pouco de ambiente. Porque até agora parece que estamos a velar um morto. (Olhando para António e Clara) Desculpem, em não me referia à Lazarina… A sua partida deixou-nos a todos muito emocionados.

Melissa – Efectivamente é um pouco estranho estarmos aqui no meio dos seus móveis e bibelôs… Não sei se é o momento adequado mas a Lazarina sempre me disse que quando morresse me deixaria esta cómoda.

Clara – Não me diga…

Sérgio Grude – Na minha qualidade de agente de seguros estou habituado a avaliar móveis antigos e outras antiguidades e posso-vos dizer que esta cómoda apenas tem valor sentimental.

António – Porque não? Já era nossa intenção mudar a decoração da casa antes de nos mudarmos.

Clara – E se foram os últimos desejos da tia Lazarina…

A baronesa regressa.

Baronesa – Sim… também ela já cá não está para dizer o contrário, não é verdade? Aliás, parece que a tia Lazarina se deu conta de que o fim estava para breve porque a mim… prometeu-me o jarrão chinês.

Melissa – A si? Ela mal a conhecia…

Baronesa – Nem sempre precisamos de conhecer as pessoas há muito tempo para nos afeiçoarmos a elas.

Chega a porteira Idalina.

Idalina – O jarrão chinês? Ela queria dar-mo… a mim.

Melissa – Esta senhora é a nossa porteira Idalina.

Idalina (apontando para a Baronesa) – Mas quem é que ela pensa que é, aquela ali?

Baronesa – Você duvida da minha palavra?

Idalina – Não vale a pena dar-se ares de grande senhora comigo. Já há três gerações que familiares meus ocupam o lugar de porteiro deste prédio.

Baronesa – Porteiros há três gerações… Está a falar de prédios de nobreza? E se voltasse para o seu cubículo?

Idalina – Porque a Senhora Baronesa mora num castelo. A senhora mora apenas num rés-do-chão. (Irónica) Dona Maria Benta… de Pedrógão.

Baronesa – De qualquer maneira esse jarrão é meu. Foi a velha que mo ofereceu. Ela gostava muito de conversar comigo.

A baronesa apodera-se do jarrão.

Idalina – O jarrão é meu, já lhe disse. A Dona Lazarina prometeu-mo. Durante trinta anos fui sempre a sua empregada de limpeza e nunca parti nada.

Idalina puxa o jarrão para o tirar das mãos da Baronesa.

Padre – Minhas senhoras, por favor … um pouco de discrição.

Baronesa – Deixa isso porcalhona.

Padre – Por favor Senhora Baronesa, cabe-lhe a si dar o exemplo. São Martinho não deu metade da sua capa a um pobre?

Baronesa – Este aqui deve ser parvo. É um jarrão! Como é que quer que eu dê metade dum jarrão?

A Baronesa e a Porteira continuam a disputar o jarrão que acaba por cair e partir-se em bocados, sob o olhar aterrorizado de António e Clara.

Padre – Estava-se mesmo a ver…

Idalina – Estou desolada.

Baronesa – Mas a culpa foi minha, não sei o que me passou pela cabeça.

Sérgio Grude apanha os cacos e pousa-os sobre a mesa.

Sérgio Grude (virando-se para António e Clara) – Desculpem-nos… Estamos todos um pouco nervosos.

Melissa – E emocionados. Todos nós temos dificuldade em fazer o luto da herança da Lazarina.

Graziela – Quer certamente dizer fazer o luto da própria Lazarina, não?

Sérgio Grude – Como já vos disse tudo o que aqui está nesta casa não tem qualquer valor comercial. São apenas recordações.

Graziela – E as recordações não têm preço, não é?

O Padre pega nos cacos suspirando.

Padre – Lembremo-nos do Santo Graal.

Joe – E se fossemos para o terraço apanhar ar?

Saem todos deixando António e Clara na sala.

Clara – São loucos furiosos, digo-te eu.

António – É verdade que a um dado momento pensei que elas se iam mesmo pegar.

Clara – E tudo isso por causa de um jarrão.

António – Faremos o inventário deste museu de horrores e depois se verá, não achas? Mas se antes eles pudessem levar cada um uma coisa…

Clara – Evitava-nos o trabalho de deitar fora.

António – É verdade… bela ideia. Podemos propor a cada um que escolha um objecto antes de se irem embora, como recordação da nossa querida desaparecida.

Clara – Nesse caso seria melhor sortear os lotes para evitar discussões

António – Achas que a velha prometeu o jarrão a duas pessoas de propósito?

Clara – E porque é que ela teria feito isso?

Chega a Dra. Bordalina.

Bordalina – Muitas pessoas gostam de partir sabendo que deixam um monte de lixo. Quer seja um penico a dividir por duas pessoas ou a Palestina. No Médio Oriente, há 5.000 anos que isso dura. Imagino que para os nossos queridos idosos é uma maneira de se tornarem imortais, continuando a estar presentes entre nós através das confusões que nos deixam quando morrem. Pelo menos assim têm a certeza que não serão logo esquecidos. Bordalina Serpa, psicoterapeuta. Sou a vossa vizinha do lado.

Clara – Psicanalista? Por favor entre. Quanto mais loucos vierem mais riremos.

António – Posso concluir que conhecia muito bem a minha tia Lazarina e que foi sua médica?

Bordalina – Se fosse o caso não vos podia dizer… Sigilo profissional. Mas não. Lazarina pertencia a uma geração que preferia confiar os seus segredos num confessionário do que fazê-lo num divã.

António – E ainda por cima é mais barato

Bordalina – E menos doloroso. Comigo as pessoas não se veem livres dos problemas com dois Pais-Nossos.

António – De qualquer maneira a doutora conhecia a minha tia.

Bordalina – Observava-a de longe… Simples deformação profissional.

Clara – Já que ela não era sua paciente, então pode falar-nos um pouco dela.

Bordalina – São apenas rumores…

António – Que espécie de rumores?

Bordalina – Segundo o que se dizia, a vossa tia teria escondido um tesouro em casa.

Clara – Um tesouro?

Bordalina – A acreditar no que dizem os porteiros, o defunto marido de Lazarina ganhou uma fortuna trazendo diamantes de Angola com a conivência de alguns políticos.

António – Isso explica que ela o tenha tido que esconder depois do 25 de Abril.

Bordalina – Ela terá comprado este apartamento durante aqueles tempos conturbados e nunca se soube o que aconteceu aos antigos proprietários, presos por denúncia dela, depois do 25 de Abril.

Clara – Será possível?

António – Então ninguém sabe o que era esse tesouro nem, claro, onde é que ela o possa ter escondido.

Bordalina – A menos que tudo isto seja uma invenção.

António – E ela falava disso?

Bordalina – Ela achava graça e não desmentia.

António – E que interesse teria ela em que se soubesse que tinha denunciado pessoas?

Bordalina – Quem sabe? Talvez achasse graça a que se falasse de uma fortuna que teria escondida em casa, a qual poderia eventualmente deixar a quem a tratasse bem.

Clara – Estou a ver.

Bordalina – Vou ter com os outros ao terraço… Penso que a festa é lá fora como sempre foi… Já agora… fechei a porta da entrada… achei melhor.

Bordalina sai para o terraço.

Clara – Decididamente a tua tia Lazarina parece-me cada vez mais simpática.

António – E a sua herança cada vez mais tóxica.

Clara – Não me espanta que o resto da família tenha cortado relações com ela.

António – E se os vizinhos tivessem vindo todos para deitar a mão ao tesouro?

Clara – É por isso que cada um quer uma coisa cá de casa.

António – Vá-se lá saber… se calhar havia qualquer coisa dentro do jarrão.

Clara – Teríamos dado por isso quando o jarrão se partiu, não achas?

António – A cómoda pode ter um fundo falso.

Clara – A menos que debaixo daquele horroroso quadro se esconda uma obra de arte.

António – Ou então já algum deles encontrou o tesouro.

Clara – E decidiram livrar-se da velha depois disso para partilhar o dinheiro.

António – Então por que razão estariam aqui todos hoje?

Clara – Eles ainda não conseguiram deitar a mão ao apartamento.

António – Devemos estar a estragar-lhes os planos.

Pausa.

Clara – Se calhar vão denunciar-nos à polícia.

António – Mas não têm nada a apontar-nos.

Clara – E os comunistas que a tua tia denunciou, achas que eles tinham algo de reprovável?

António – Achas que eram comunistas?

Clara – É provável…

António – De qualquer maneira já não somos governados por ditadores e não somos comunistas.

Clara – Fala por ti.

António –Tu és comunista?

Clara – Porquê, isso incomoda-te?

António – Não, nada disso, só que não sabia…

Clara – Digamos que já tive ligações com eles.

António – Ligações? O que queres dizer com isso?

Clara – Esquece… mudemos de assunto.

António – Não sabia que tinhas tido ligações com os comunistas.

Clara – Há uma semana tu também não sabias que tinhas uma tia fascista.

António – Não compares… Deves estar a delirar… Eu não sou responsável pelo que a minha tia fazia… Ainda nem sequer tinha nascido.

Clara – Está bem… Mas incomoda-me saber que a tua tia denunciou pessoas durante o fascismo, que o teu tio ganhou dinheiro com diamantes de Angola e que nós podemos vir viver num apartamento comprado por eles que tu herdaste.

Pausa.

António – Acho que estamos a delirar.

Clara – Tens razão. Afinal isto é só a Festa dos Vizinhos.

António – Achas que poderão ter posto qualquer coisa na sangria?

Clara – Vamos até ao terraço para ver o que eles possam estar a tramar.

António – Achas?

Clara – Estamos em nossa casa, não estamos.

António – Se tu o dizes…

Saem ambos. Chega Joe que lhe põe a vasculhar a sala. Idalina volta para a sala e surpreende-o.

Idalina – Por mim não se incomode.

Joe – Ah! D. Idalina … por quem me toma. Não sou quem você pensa.

Idalina – Já tinha desconfiado, sabe.

Joe – A si posso dizer-lhe… afinal de contas temos quase a mesma profissão.

Idalina – Qual profissão? Não tenha vergonha, pode tratar-me como se eu também fosse puta.

Joe mostra-lhe um cartão de polícia.

Joe – Inspector Ramires.

Idalina – Inspector?

Joe faz-lhe sinal para se calar pois esta informação deve manter-se em segredo.

Joe – Estou aqui “undercover”.

Idalina – Under quê?

Joe – Disfarçado, infiltrado, com uma identidade falsa, está a perceber?

Idalina – Sim, sim.

Joe – Temos boas razões para desconfiar que a velha… como é que ela se chamava?

Idalina – Lazarina.

Joe – É isso mesmo… Nós pensamos que a Senhora Dona Lazarina não teve morte natural.

Idalina – Ai sim?

Joe – Pode tratar-se dum assassínio mas ainda não temos provas. Estou aqui para investigar.

Idalina – Muito bem.

Joe – Para porteira não é lá muito faladora pois não.

Idalina – Nem por isso.

Joe – E a senhora sabe de alguma coisa.

Idalina – Não.

Joe – Sinto que me vai dar uma ajuda preciosa… Conhece as circunstâncias exactas da morte de Lazarina?

Idalina – Creio que foi um acidente, não foi?

Joe – Vá-se lá saber. Quando é um dos potenciais criminosos que preenche a certidão de óbito e um outro que ministra a extrema-unção…

Idalina – Ah sim…

Joe – Imagino que também nada sabe sobre um tesouro que a velha teria em casa dela.

Idalina – Não sei não.

Joe – Bom, vamos até ao terraço para não estranharem a nossa ausência. Se por acaso se aperceber de qualquer coisa venha ter comigo, de acordo?

Idalina – Fique descansado.

Joe – A partir de agora a Idalina é a minha adjunta.

Saem as duas. Chegam o Coronel Farto e o Dr. João Barra, advogado.

Dr. Barra – Não há ninguém?

Coronel Farto – Não sei… mas a mesa está posta, como todos os anos…

Dr. Barra – Devem estar todos no terraço…

Coronel Farto – Aproveitemos para beber um copo, caro Doutor Barra.

Dr. Barra – Sangria?

Coronel Farto – Já agora…

Dr. Barra – De qualquer maneira não vejo outra bebida…

Fazem uma saúde tocando os copos.

Coronel Farto – A sangria da Administradora do prédio continua muito má.

Dr. Barra – Tem razão, cada ano pior.

Voltam a beber um golo.

Coronel Farto – Não posso deixar de pensar que o sacrista do religioso deve saber qualquer coisa.

Dr. Barra – O padre Santos? Acha?

Coronel Farto – Era o confessor da velha, não era?

Dr. Barra – Acha que esse beato falso se prepara para nos passar a perna?

Coronel Farto – Como é que podemos confiar neste padre?

Dr. Barra – Ainda por cima um padre que renunciou à igreja…

Coronel Farto – Porque será que o bispo o terá obrigado a deixar a igreja? Ele diz que foi ele quem pediu a demissão mas não acredito que tenha sido assim.

Dr. Barra – Realmente, com a actual crise de vocações, custa a crer que a igreja demita um padre… é preciso que ele tenha feito algo de muito grave.

Coronel Farto – Tem muita razão… Nem os mandam embora quando desconfiam de pedofilia…

Dr. Barra – Talvez ele tenha querido continuar a dizer a missa em latim ou alguma coisa do género.

Coronel Farto – Voltando ao assunto da velha… o senhor, como seu advogado, deve saber alguma coisa.

Dr. Barra – Segredo profissional…

Coronel Farto – Oh doutor, não me venha com essa treta, por favor…

Dr. Barra – Eu era apenas o advogado dela, não o seu confessor.

Coronel Farto – Ainda assim, tenho quase a certeza de que ele sabe onde é que ela encafuou o dinheirinho. Eu é que o vou confessar, você vai ver…

Dr. Barra – Mas vá com calma, já basta estarmos a braços com a morte da velha…

Coronel Farto – Não se preocupe… serei muito diplomata… pode ter a certeza de que não deixarei vestígios.

Dr. Barra – Quem mais poderá saber qualquer coisa sobre o dinheiro da velha?

Coronel Farto – O agente de seguros?

Dr. Barra – Não me cheira… A Lazarina tinha boas razões para não confiar nele.

Coronel Farto – O doutor sabe, por acaso, porque é que ele já esteve preso?

Dr. Barra – Ele recebia os prémios dos clientes cujos bens era suposto defender e o dinheiro ia direitinho para a o seu bolso… foi apanhado depois de um incêndio: o cliente dele esperava ser reembolsado e só depois é que se deu conta de que o seguro não existia.

Coronel Farto – E os pacóvios iam na conversa dele…

Dr. Barra – E o pior é que o tipo incendiou a própria casa de férias porque não conseguia vendê-la… esperava resolver o assunto recebendo a indemnização do seguro…

Coronel Farto – Que idiota! Mas o doutor parece conhecer muito bem o processo…

Dr. Barra – E conheço… O idiota fui eu!

Coronel Farto – Estou a ver… De qualquer maneira já não temos muito tempo… Quando aqueles dois cretinos se instalarem aqui será muito mais difícil revistar o apartamento.

O Coronel começa a abrir e vasculhar algumas gavetas e o advogado imita-o. Sérgio Grude regressa à sala acompanhado do Padre Santos.

Sérgio Grude – Estão à procura de alguma coisa?

Dr. Barra – Se calhar o mesmo que o senhor…

Coronel Farto – E o senhor, padre? O senhor era o confessor de Lazarina!

Padre Santos – Infelizmente, meu filho, a pobre Lazarina não me contava tudo… e mesmo que contasse, devo lembrar-vos que o que me dizem em confissão é segredo.

Sérgio Grude – Desde que não queira fazer-nos o ninho atrás da orelha…

O Dr. Barra e Sérgio Grude começam a procurar em tudo o que é lugar.

Padre Santos – Tenhamos confiança, meus filhos. A Bíblia diz: procura e encontrarás, pede e receberás, bate à porta e ela ser-te-á aberta…

Sérgio Grude – E ainda por cima goza connosco!

O Coronel aproxima-se do padre com um ar ameaçador.

Coronel Farto – Tem a certeza, padre, que não tem nada para nos confessar? Confie em mim e eu dar-lhe-ei a absolvição. Mas se preferir ser mártir, também lhe posso dar a extrema-unção…

António e Clara regressam. O Coronel larga o colarinho do padre e os outros dois, apanhados em falta, param de vasculhar.

Dr. Barra – Oh meus queridos amigos, íamos agora mesmo ter convosco. Apresento-me: Doutor Barra, advogado.

Coronel Farto – Não é preciso dizer o que faz pois todos os seus clientes acabam atrás das grades.

Dr. Barra – Apresento-vos o Coronel Farto.

Coronel Farto – Queridos vizinhos…

António – Os senhores… Os senhores perderam alguma coisa?

Dr. Barros – Sim… O Coronel já não se lembra onde deixou o telemóvel.

Clara – Então porque não lhe liga?

Dr. Barros – E porque é que lhe hei-de ligar se ele está aqui ao meu lado?

Clara – Para saber onde está o telemóvel dele.

Dr. Barros – Claro… mas… não estou certo de ter o seu número de telefone.

António – Já que está ao lado dele porque é que não lho pede?

Dr. Barros – Claro… mas… Ah já encontrei… Acho que o tenho.

Ele apoia numa tecla do seu telemóvel e começa a tocar o telemóvel do Coronel, no seu bolso.

Coronel Farto – Que disparate… Procuro sempre em tudo o que é lugar e o telemóvel está sempre no meu bolso… Ai esta cabeça…

Dr. Barros – Pronto, agora que as apresentações estão feitas…

Momento embaraçoso em que todos ficam sem saber o que dizer.

Coronel Farto – Padre, quer acompanhar-me? Vamos até ao terraço… tenho uma perguntinha a fazer-lhe. Uma espécie de caso de consciência…

Padre Santos (desconfiado) – Se eu puder esclarecê-lo, meu filho…

Saem ambos.

Dr. Barros – Vou pôr uma música…

Ele põe uma música. Ouvem-se gritos. O Dr. Barros aumenta o som da música.

Dr. Barros – Adoro esta passagem… é Chopin, não é?

Clara – Não, é Wagner!

Dr. Barros – Claro, tinha o nome na ponta da língua… (Barulhos de luta) Vou ver o que eles estão a fazer. O Coronel tem um temperamento um pouco agressivo. Quando fala de Teologia com o padre Santos tem tendência a inflamar-se um pouco…

Sai e Clara baixa o som da música.

Clara – Curioso… a cara deste padre não me é estranha.

António – Onde é que tu podes ter encontrado um padre?

Clara – Eu ainda fiz a primeira comunhão…

António – Mas outro dia disseste-me que eras judia?

Clara – Eu não te disse que era judia… Digamos que… é mais complicado do que parece.

A psicóloga, Dra. Bordalina Serpa regressa à sala e serve-se de sangria.

Clara (dirigindo-se à Dra. Bordalina) – A senhora conhece bem o Padre Santos?

Bordalina – Os padres raramente consultam psicólogos. É pena que o não façam pois são aqueles que mais precisam.

Clara – Eu tenho a impressão que o conheço mas não consigo lembrar-me da ocasião em que me possa ter cruzado com ele

Bordalina – Há por vezes coisas que nós preferimos esquecer. Chama-se a isso “recalcamento”.

António – É verdade… É o que aconteceu com a minha tia Lazarina. Não sabia que tinha uma tia e quando soube da sua existência isso não me surpreendeu. Acredito que já devia ter ouvido falar nela quando era criança.

Bordalina – Segredos de família… é como os cadáveres que lançamos à água com um peso atado ao pé. Ao longo do tempo, à medida que o corpo se decompõe, pesa menos e acaba por vir à superfície.

António – Lazarina…

Bordalina – Banida por colaborar com o Salazar e a sua pandilha.

Silêncio.

Clara – Quando era adolescente toda a gente gozava comigo porque eu já tinha um peito grande. Não sei porque é que isto me veio agora à cabeça…

Bordalina – O padre Santos… isso deveria intrigá-la.

Novo silêncio. Perturbação de Clara.

Clara – Lembrei-me… Agora já se fez luz… A primeira comunhão… O catecismo… Era ele!

António – Ele?

Clara – Eu queria fazer a primeira comunhão como todas as minha amigas… Para ser como elas… estudei sempre numa escola católica…

António – Mas também nunca me falaste disso. Ainda por cima tu és uma acérrima defensora da escola pública!

Bordalina – Resigne-se, meu pobre amigo. As mulheres não vos dizem sempre tudo. Nem mesmo a sua santa Mãe. Aliás, ela escondeu-lhe a existência da Tia Lazarina.

Clara – O padre sabia que eu tinha antepassados judeus… e disse-me que podia fechar os olhos se eu também fechasse os meus…

E sai precipitadamente da sala. O Dr. Barra entra e aumenta o som da música.

Dr. Barra – Adoro estre trecho.

A baronesa regressa.

Baronesa – Aqui já ninguém se entende.

Bordalina – Pelo contrário, garanto-lhe que nos entendemos cada vez melhor.

Dr. Barra – Não se diz que a música liberta dopamina no coração… Desculpem, queria dizer no cérebro.

O Coronel regressa.

Coronel Farto (curvando-se frente à baronesa) – Senhora baronesa, os meus respeitosos cumprimentos. Dá-me a honra desta dança?

Baronesa – As minhas desculpas, coronel, mas não inscrevo no meu “carnet de bal” patentes abaixo de General. Um coronel? Só se fosse muito novo…

Coronel Farto – Mas baronesa não é o título menos importante nos de sangue azul?

Baronesa – Além disso não se dança ao som de Wagner.

Coronel Barra – Já que ninguém dança, vou baixar a música.

O coronel baixa o som da música.

Coronel Farto – E se fossemos felicitar a senhora dona Graziela Forte pela maravilhosa sangria que fez?

Bordalina – Acho muito bem… e podemos pedir-lhe a receita.

Dr. Barra – Todos sabem que ela sempre se recusou a partilhar o segredo da sua sangria.

Coronel Farto – Caro doutor, esquece-se que eu fiz a guerra na Guiné. Saberia bem como obrigá-la a falar…

Dr. Barra – Ele é impagável…

Saem o Coronel e o Advogado. Clara regressa.

António – Sentes-te bem? Estás tão pálida…

Clara – Sim, sim… Já estou melhor… Não devia mas estou de facto melhor… Quero dizer… é verdade que isto alivia…

António parece nada compreender.

Bordalina – Creio que finalmente ela matou o padre.

E sai da sala.

António – São todos malucos, acredita.

Clara – E começo a questionar-me se a loucura deles não será contagiosa.

António (alheado) – Ah sim?

Clara – Acho que há bocadinho fui um pouco longe demais com o padre Santos… Tentou uma vez mais tocar-me no peito e eu dei-lhe um valente empurrão…

António – Mas o principal é que deve mesmo haver um tesouro nesta casa. Tu viste? Estavam todos a vasculhar as gavetas.

Clara – Então nós também devíamos procurar.

António – E começamos por onde?

Clara – Não sei… mas o certo é que os temos que revistar todos antes de se irem embora.

António – Há bocado queríamos que cada um deles levasse uma coisa para despacharmos estas porcarias…

Clara – Nem penses nisso. (Um pouco histérica) Esse tesouro é nosso e nós vamos encontrá-lo.

E começam ambos a vasculhar tudo. A dona Idalina, porteira, regressa. Eles interrompem o que estavam a fazer quando se dão conta de que são observados.

António – Viva dona Idalina.

Clara – A senhora é a porteira, não é?

Idalina – Estou à procura daquela senhora… Joe… por acaso não a viram?

Clara – Eu não.

António – Então a senhora é que é a porteira.

Idalina – Hum…

Clara – Então é a si que devemos agradecer por manterem o prédio limpo…

António – Espero que a minha tia tenha sido generosa consigo.

Idalina – A Sra. D. Lazarina… O que é que eu posso dizer… Durante os trinta anos em que semanalmente também fiz a limpeza em casa dela, nem uma gorjeta me deu.

António – Infelizmente receio que nós não tenhamos meios para a manter como empregada de limpeza.

Clara – Nós não temos um tesouro escondido… como a tia Lazarina tinha.

Idalina – Mas a vossa tia não era lá muito generosa.

António – Mas parece que ela era muito estimada aqui no prédio.

Idalina – É verdade… Ela disse a todos que não os esqueceria no seu testamento.

António – No seu testamento? A minha tia deixou um testamento?

Idalina serve-se de sangria.

Idalina – De qualquer maneira ninguém encontrou o testamento depois da sua morte… Mas sabe-se lá… talvez um dia ele apareça… desculpem, tenho que ir falar já com o comissário… quero dizer, com esse travesti que por aí anda.

Idalina sai.

António – Um testamento… Já viste como isso alteraria tudo…

Clara – Achas? Porquê?

António – Eu sou apenas o sobrinho neto; se herdo este apartamento é porque não encontraram qualquer testamento que determinasse especificamente algum outro herdeiro.

Clara – Mas tu és a única pessoa de família que ela tinha.

António – Eu sou apenas o herdeiro por não haver outro; se ela fez testamento pode muito bem ter deixado o apartamento a outra pessoa; aos seus vizinhos, por exemplo.

Clara – Estou a perceber… então se esse documento for encontrado…

António – Só nos resta ficar no nosso T1 da Amadora.

Clara – Então pensas que é isso que eles procuram… O testamento!

António – Se esse documento existir, convém que sejamos nós os primeiros a deitar-lhe a mão.

Clara – Mas agora não podemos pô-los na rua assim sem mais nem menos.

António – Onde é que ela pode ter escondido o estupor do testamento.

Clara – Vamos ver no quarto dela…

Saem os dois. Joe regressa e põe-se a vasculhar a sala. É interrompida pela chegada da porteira.

Idalina – Até que enfim, comissário, andava à sua procura. Ao que parece o Padre Santos também foi vítima de um acidente doméstico… Acabo de ver o corpo dele todo esfrangalhado lá em baixo, no pátio.

Joe – Decididamente aquele parapeito parece-me perigoso. Era bom que os senhores tratassem do assunto… Eu dou uma palavrinha à administradora do prédio.

Idalina – Digo-lhe que morreu uma pessoa e está preocupado com o parapeito.

Joe – Tem razão, vou dar uma vista de olhos.

Saem. Graziela regressa com o Dr. Barra e o Coronel Farto.

Graziela – O coronel não tem tacto algum… Não tínhamos necessidade dum segundo cadáver…

Dr. Barra – Isto vai mesmo acabar por parecer duvidoso.

Coronel Farto – Mas não fui eu, juro! Só lhe dei um safanão antes de o deixar com a dona da casa.

Graziela – Seja o que for que se tenha passado temos que tratar de esconder o corpo. Por agora podemos pô-lo na cave… depois logo se vê.

Coronel Farto – Eu trato disso

Dr. Barra – Um padreco… Ninguém dará pela sua falta… Já ninguém vai à missa…

Coronel Farto – Sobretudo missas em latim.

Graziela – Então vá… do que está à espera?

Coronel Farto – Vou já.

O Coronel sai

Dr. Barra – E pensar que o padre podia ser o único a saber onde está o maldito testamento da Lazarina.

Graziela – E o senhor tem a certeza de que esse testamento existe?

Dr. Barra – Fui eu mesmo que lhe sugeri que o fizesse. E ela garantiu-me que o tinha feito.

Graziela – Mas eu já me certifiquei que o testamento não está registado no notário.

Dr. Barra – Ela pode ter feito um testamento ológrafo.

Graziela – Ológrafo?

Dr. Barra – Sim, uma declaração manuscrita com as disposições sobre como distribuir os bens após a morte… e é legal… desde que ele exista e apareça.

Graziela – Então para que serve fazer uma coisa dessas se se esconde de tal maneira que ninguém a encontra?

Dr. Barra – Vá-se lá saber… se calhar ela tinha medo que algum mal intencionado o encontrasse.

Graziela – Esse maldito papel deve estar aí escondido algures nesta casa.

Dr. Barra – É evidente que, a existir, esse testamento poria em causa a herança deste sobrinho afastado.

Graziela – Desde que a doida da velha nos tenha feito seus herdeiros.

Dr. Barra – E onde é que esses dois cretinos estarão?

Idalina chega.

Dr. Barra – Não era a senhora que fazia a limpeza deste apartamento? Não saberá por acaso onde é que a Lazarina guardava os documentos importantes?

Idalina – O que é que o senhor pensa? Acha que pelo facto de ser empregada doméstica eu ando por aí a mexer no que não é meu?

Chega a Dra. Bordalina seguida do Coronel Farto.

Graziela – E a senhora, Doutora. Bordalina, tem alguma ideia?

Bordalina – Francamente… sou psicanalista, não sou adivinha.

Dr. Barra – Mesmo assim, deve conhecer os mistérios da alma humana.

Bordalina – O senhor por acaso leu “A Carta Roubada” de Edgar Poe?

Graziela – Não sabia que esse senhor nos tinha escrito uma carta. É um novo proprietário?

Bordalina – Esqueça… Quando queremos esconder alguma coisa às vezes é mais fácil pô-la quase à vista de todos, num lugar onde não caberia na cabeça de alguém ir procurar.

E sai da sala.

Coronel Farto – Detesto os ares superiores desta fulana… Parece que está sempre a dar-nos lições… Como se fossemos ignorantes…

Graziela – À vista de todos… Se calhar ela tem razão… O que é que aqui estará à vista de todos?

Olham todos à volta da sala, perplexos, sem repararem no quadro que ocupa um lugar de destaque numa das paredes. E recomeçam a vasculhar. Chega Melissa Grude.

Melissa – Acho que encontrei alguma coisa.

Olham todos para ela. Melissa segura e sacode uma peruca.

Graziela – O que é isso?

Melissa – Uma peruca!

Coronel Farto – E daí?

Graziela – Não nos vai dizer que a Lazarina era um travesti.

Idalina – Deve ser uma recordação.

Dr. Barra – Uma recordação?

Idalina – A peruca que ela teve que usar quando o cabelo lhe caiu.

E põe a peruca na cabeça. António e Clara voltam.

António – O que é que está a fazer com essa coisa na cabeça?

Graziela – Não me diga que já não nos podemos divertir.

Coronel Farto – Credo, até já chateia… andam a espiar-nos ou quê?

Clara – Nós? A espiá-los?

António – Estamos em nossa casa, não estamos?

Dr. Barra – Por enquanto… sim.

Coronel Farto – Devem saber que não têm legitimidade alguma para estar aqui. Nem sequer conheciam a Lazarina.

António – Sim, mas somos do mesmo sangue. E lei é lei. Quer vos agrade ou não, sou eu o herdeiro deste apartamento.

Idalina – Nem sequer o vimos no enterro da Lazarina.

Clara – E vocês todos? Só tomavam conta dela na esperança de que os vossos nomes constassem do testamento.

Graziela – A sua tia detestava os esquerdistas… ela nunca deixaria os seus bens a pessoas como vocês.

António – A senhora… A senhora começa a chatear-nos.

Coronel Farto – Por favor não seja indelicado com a dona Graziela Forte, não seja impertinente. Quer acabar como a sua tia?

António – Então é verdade, foi o senhor que assassinou a tia Lazarina?

Dr. Barra – Vamos, coronel, tenha lá calma… Sabe muito bem que a morte da Lazarina foi acidental.

A Dra. Sara Curado chega, seguida de Joe.

Clara – Eu pensava que ela tinha morrido de ataque cardíaco, não é verdade Doutora Sara Curado?

Sara Curado – Para ser franca, não se sabe muito bem do que morreu.

António – Mas foi a senhora que passou a certidão de óbito, não foi?

Sara Curado – Sabe, a medicina legal não é uma ciência exacta.

Clara – Mesmo assim a senhora deve saber se ela morreu de paragem cardíaca, de uma queda do 5º andar ou com uma bala nas costas…

António – Ou por ter exagerado nos barbitúricos ou por enforcamento …

Melissa – Efectivamente foi uma mistura de tudo isso.

Passa um anjo.

Idalina (em segredo a Joe) – Do que é que está à espera para os prender?

Joe – Espero ter mais provas… Acredite em mim… Deixe a polícia trabalhar

Joe sai, seguida de Idalina.

Dr. Barra – Acho que a Senhora Dona Melissa abusou da sangria… Se o seu marido a levasse para o terraço para apanhar um pouco de ar…

Sérgio Grude – Vem comigo, minha querida.

Melissa – Para quê… Ainda me aguento bem de pé.

Sr. Sérgio Grude sai levando a sua mulher. A Dra. Bordalina regressa e serve-se de sangria.

Dr. Barra – Creio que todos nós abusámos um pouco deste delicioso elixir que a Administradora Graziela nos preparou.

Sara Curado – A propósito, ainda não me deu a receita da sangria.

Bordalina – O segredo da sangria, como o de uma bela reunião de família, é deixar marinar todos os ingredientes no seu sumo durante algum tempo.

Sai da sala, com um andar inseguro, meia etilizada.

Dr. Barra – Bem, acho que devemos acalmar um pouco. Afinal estamos todos aqui para celebrar a chegada dos vizinhos e a memória da nossa querida Lazarina.

Sérgio Grude – Sim, muito querida.

Sara Curado – E você jovem António, o que é que faz na vida?

António –Trabalho para uma editora. Sou director de um sector que edita guias de viagem.

Graziela – Já viram… guias de viagem… isso é apaixonante.

Dr. Barra – Então deve viajar muito.

António – Deve saber que podemos escrever romances policiais sem ser polícia ou vadio.

Clara – Infelizmente, hoje em dia, até se podem escrever romances sem se ser romancista.

Sara Curado – E a menina o que faz?

Clara – Sou professora de inglês.

Graziela (ausente) – Ah, então é isso…

Sara Curado – Imagino que para ser professora de inglês tenha pelo menos que falar inglês, não?

Clara – Claro. Mas com a dificuldade que há em ter bons professores de línguas, qualquer dia nem isso será obrigatório

António – Mas há mesmo falta de professores? Não sabia.

Clara (ao ouvido de António) – Com uma pergunta daquelas o que querias que respondesse?

Sara Curado – O mesmo se passa com os médicos. Há cada vez menos e somos obrigados a mandá-los vir do estrangeiro. Imaginem só que o meu é preto…

Dr. Barra – Não me diga, Doutora.

Sara Curado – E passa-se o mesmo com os padres. Com a crise de vocações… Vão ver que daqui a pouco tempo já nem é preciso acreditar em Deus para dizer missa.

Dr. Barra – Ou até mesmo ser católico. Até já se diz por aí que vão transformar as nossas igrejas em sinagogas.

Sara Curado – Parece-me que o Dr. queria dizer mesquitas, não?

Dr. Barra – Vai dar ao mesmo.

Sérgio Grude regressa.

Sérgio Grude – Posso servir-vos um pouco mais de sangria?

Graziela – Vá lá…

A atmosfera fica um pouco pesada.

António – Não, muito obrigado.

Clara – Eu também não, muito obrigada, acho que já tenho a minha conta.

António – Aliás já começa a ser tarde, não acham?

Graziela –Um último copito… para a viagem.

Sérgio Grude – Agora que começámos a conhecer-nos não nos vamos separar já.

Graziela dá um copo de sangria a António e Clara, que se vêm forçados a beber mais um pouco.

Sara Curado – É boa, não é?

Clara – Sim… acho que vou vomitar.

António – Vou contigo.

Preparam-se para sair precipitadamente.

Graziela – Sabem onde fica a casa de banho?

Sara Curado – A porta da frente, ao fundo do corredor.

António e Clara saem.

Dr. Barra – Esta sangria é mesmo infecta… o que é que lá põe dentro?

Sérgio Grude – Espero que não nos queira envenenar todos para guardar a herança só para si.

Sara Curado – Calma, vejamos… sabem bem que no caso da Lazarina foi um lamentável acidente.

Dr. Barra – No máximo um homicídio involuntário, do ponto de vista legal.

Graziela – Poder-se-ia até dizer um acidente doméstico seguido de um erro médico.

Sérgio Grude – Seja o que for que tenha acontecido, se não encontrarmos o testamento não nos toca nada.

Graziela – A velha enganou-nos bem a todos.

Sara Curado – E ao menos esse testamento existe?

Idalina – Já procurámos na casa toda.

Dr. Barra – E se eles o encontraram antes de nós chegarmos?

Sara Curado – Eles?

Dr. Barra – Esses dois desgraçados.

Graziela – E terão escondido o testamento?

Sara Curado – Tinham todo o interesse nisso, não?

Coronel Farto – Não temos outro remédio senão interrogá-los.

Sara Curado – Sim, mas então sem violência inútil.

Coronel Farto – Vamos esperar que eles voltem.

Graziela – Aqui já procurámos em tudo o que é lugar.

Sérgio Grude – Aproveitemos enquanto eles estão na casa de banho para vasculhar o resto do apartamento.

Graziela – Já viram o que a minha sangria faz… é mesmo boa.

Saem todos. António e Clara regressam.

António – Achas que se puseram todos a andar?

Clara – Espantar-me-ia que assim fosse… enquanto não descobrirem o testamento…

António – Onde é que a velha pode ter escondido essa coisa.

Clara – Num cofre?

António – Nos filmes os cofres costumam estar atrás dos quadros.

Ambos tentam tirar o quadro da parede.

António – Merda, o raio do quadro é pesado.

Conseguem tirar o quadro e encostam-no a um móvel

Clara – Não há cofre algum na parede.

António (espreitando para a parte de trás do quadro) – Olha, olha aqui.

Voltam o quadro e veem que a parte de trás está coberta com um texto.

Clara – O testamento da tia Lazarina.

Amedrontados, viram de novo o quadro para não se ver a parte de trás.

António – Esquisito, não é?

Clara – Sim… dir-se-ia uma mensagem deixada por um fantasma.

António – E o que é que fazemos?

Clara – Podemos fazer de conta que nada vimos, que não encontrámos nada.

António – Ou até destrui-lo e fazer de conta que este testamento nunca existiu; seria mais seguro.

Clara – Mas pode ser que mesmo assim ela te deixe o apartamento … tu não sabias da sua existência mas ela sabia muito bem que tinha um sobrinho neto, não?

António – Isso resolveria todos os problemas… mas… não devemos sonhar.

Clara – Nunca se sabe… mais vale ver o que está escrito no papel antes de o destruir.

António – Tens razão, assim evitaríamos problemas de consciência difíceis de resolver.

Clara – Se pudermos recuperar este apartamento pombalino sem achincalhar a última vontade duma velha fascista.

António – Tens razão … no caso do testamento não me contemplar, de não ser o herdeiro legítimo, terei tempo de me reconciliar com a minha consciência.

Clara – Uma herança conseguida com dinheiro obtido da maneira que bem sabemos…

António – Acho que estás a levantar um problema que não nos diz respeito… mas está bem.

Clara – E depois trata-se de um belo apartamento.

António – Ok! Eu vou ver atrás do quadro… tenta aguentá-los fora da sala.

Clara sai para o corredor. António volta de novo o quadro e lê o que está escrito na parte de trás.

António – Ai o estupor da mulher…

Volta a pendurar o quadro. Clara regressa seguida pelo Coronel.

Coronel Farto – Então pelos vistos vamos ser vizinhos.

Clara – Sim, talvez… mas cruzei-me há pouco com Joe e creio que ela queria trocar umas palavras a sós consigo.

Coronel Farto – A sós comigo?

Clara – Eu não quis meter-me no assunto mas acho que o senhor lhe causou uma boa impressão. Ela deve estar no terraço.

Coronel Farto – Então vou ter com ela.

O Coronel sai.

Clara – Então?

António – Os vizinhos herdam apenas os móveis e bibelôs.

Clara – E o apartamento?

António – Ela deixa-o a algumas instituições.

Clara – Uma maneira de se redimir dos pensamentos impuros que teve sempre que olhou para este quadro, para o seu amor platónico.

António (embaraçado) – Sim, pode ser.

Clara – E quais são as instituições?

António – Tenho de ler outra vez… só tive tempo para ver o mais importante.

Clara – Bem… de qualquer maneira já não temos muito tempo. Temos que nos decidir.

António – E fazemos o quê?

António hesita.

Clara – É realmente a derradeira vontade da tia Lazarina.

António – Isso sem pensar que não será fácil fazer sumir o quadro.

Clara – E se um dia alguém se lembrar de ver a parte de trás do quadro.

António – Então desistimos? Dizemos a todos que encontrámos o testamento da tia?

Clara – Tu imaginas-te a viver neste apartamento? Com estes vizinhos psicopatas que se calhar até mataram a tua tia depois de a torturarem para lhe extorquir os bens.

António – E poderíamos ser os próximos na lista.

Momento de hesitação.

Clara – E afinal o apartamento não é assim tão maravilhoso.

António – Não exageres.

Clara – Tens razão, sempre é um apartamento em plena baixa pombalina com vista de Tejo.

António – Sim, mas por outro lado teríamos que pagar direitos sucessórios… e não devem ser pequenos…

Clara – Tens razão, mais vale mesmo desistirmos.

António – Vamos pelo menos olhar pela última vez para o rio Tejo.

Clara – Mas isso vai fazer-nos mal…

António – Ainda podemos mudar de ideias.

E saem para o terraço. Graziela regressa, acompanhada de todos os vizinhos, excepto Joe e a baronesa.

Graziela – Nada.

Coronel Farto – Essa velha devassa gozou mesmo connosco.

Sara Curado – Creio que vamos ter que perceber o que se passou, já que nunca iremos receber a recompensa de todos estes anos de abnegação ao serviço de uma ingrata

Coronel Farto – Andámos aqui com pezinhos de lã à volta da velha para nada

António e Clara regressam.

Dr. Barra – E claro que nos vão dizer que também nada encontraram.

António – Quer dizer…

Para grande surpresa de António, Clara faz-se de inocente.

Clara – Encontrar o quê?

Mas o quadro, mal pendurado, cai e todos podem ver o que está escrito na parte de trás

Dr. Barra – O testamento de Lazarina

Sara Curado – Deus seja louvado.

Sérgio Grude – Uma prova de que nunca se deve desistir.

Graziela – Nas costas de um quadro.

Melissa – E é válido?

Dr. Barra – A lei apenas refere que tem que ser escrito à mão pelo próprio… não define onde. Uma vez até validaram um redigido com sangue na parte lateral de uma máquina de lavar.

Idalina – E então o que é que o testamento diz?

Dr. Barra – Vou ler…

Tira os óculos e afina a garganta. António e Clara trocam olhares de resignação.

Dr. Barra – Este é o meu testamento autêntico, manualmente escrito por mim, que anula todos os outros

Joe – Talvez pudéssemos passar por cima dos preliminares.

Dr. Barra – Eu deixo o apartamento de que sou proprietária em Lisboa, metade para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a outra metade para a Fundação Salazar.

Bordalina – É o que se chama dividir o mal pelas aldeias … neste caso dividir o bem

Sérgio Grude – Se ambas as instituições decidirem partilhar o apartamento, a coabitação não deve ser fácil.

Decepção geral.

Sara Curado – É tudo?

Dr. Barra – Não… o quadro fica para a administradora do prédio, Senhora Dona Graziela, representante dos coproprietários, que o deverá colocar no hall de entrada para que todos possam disfrutar dele.

Graziela – Genial!

Dr. Barra – Segue-se uma lista exaustiva dos outros objectos sem valor que se encontram no apartamento, até à mais pequena colher de café. São referidas todas as pessoas e os respectivos objectos que recebem… e o vaso chinês é deixado, indiviso, à baronesa e à porteira.

Clara – A tia Lazarina afinal tinha bastante sentido de humor.

Graziela examina o quadro.

Ângela – Para que todos possam disfrutar… esta porcaria… e ainda por cima ela gozou connosco, essa velha idiota.

António – Por favor, a senhora está a falar da minha tia…

Dr. Barros – Que o deserda com este testamento.

Melissa – Estuporada.

Idalina – Nem pensem em por isso na entrada.

Melissa – Porque não… até faria com que os ladrões fugissem

Sérgio Grude – Bom, assim sendo, acho que não temos mais nada que nos retenha aqui

António – E o que é que se faz com o testamento?

Sara Curado – Faça o que quiser… tanto num caso como no outro não herdávamos nada.

Melissa – Excepto este monte de velharias sem qualquer valor.

Sérgio Grude – O melhor seria queimar esse testamento e assim o apartamento seria seu de pleno direito.

Sara Curado – Tê-los a vocês ou a outros como vizinhos é a mesmíssima coisa.

Graziela – Ao menos vocês já são um pouco da família.

Dr. Barra – Sim, vamos ter que nos voltar a encontrar.

Preparam-se para sair.

Melissa – Agradeço muito esta simpática reunião.

Graziela – E mais uma vez os nossos sentidos pêsames.

Saem todos, uns a seguir aos outros, passando em frente de António e Clara para lhes apertarem a mão ou dar um beijo, como se se tratasse de um enterro. António e Clara suspiram mal sai o último.

António – Regresso à casa de partida.

Clara – Nem por isso… ainda temos que decidir o que fazemos com este testamento.

António – Demasiado tarde para o fazer desaparecer… Há demasiadas testemunhas. Eles ter-nos-iam nas mãos.

Clara – Então?

António – Sei lá…

Clara – De qualquer maneira não tenho a menor vontade de dormir aqui esta noite.

António – Nem eu… E o que fazemos com o quadro? Quero dizer, com o testamento?

Clara – Não o conseguimos levar… É demasiado pesado.

António – Amanhã logo se vê… A noite é boa conselheira.

Clara – Voltamos para os nossos subúrbios, na Amadora. Não temos vista sobre o Tejo mas ao menos estamos na nossa casa.

António – Sim, decididamente era bom demais para ser verdade.

Clara – Podes aproveitar para escrever um romance.

António – Ou uma peça de teatro.

Clara – E se for um best-seller poderemos comprar um apartamento com os teus direitos de autor.

António olha pela última vez para o quadro.

António – Tinhas razão, era mesmo o Salazar.

Clara – Quando ainda era pouco conhecido.

António – Achas que volte a ligar o alarme?

Clara – Para o que aqui está que possam roubar?

Saem ambos.

Escuro.

Um raio de luz duma lanterna, explorando a sala. Depois um segundo raio de luz. Os raios cruzam-se. Um dos personagens mexe no interruptor e a luz acende-se. Descobrimos duas pessoas vestidas de Pai Natal.

Joe – Finalmente.

Baronesa – O que é que vamos fazer?

Joe – Não vamos chamar a polícia.

Retiram as barbas. São Joe e a Baronesa.

Baronesa – Deduzo que o senhor não é propriamente um polícia

Joe – Nem a senhora é uma verdadeira baronesa.

Baronesa – Vendo bem o senhor até faz o meu género.

Joe – Que género?

Baronesa – O género de mudar mais de identidade do que de cuecas.

Joe – Mas quem lhe disse que eu era polícia? Ou que era suposto sê-lo…

Baronesa – Quando se quer guardar um segredo mais vale evitar confidenciar com a porteira. (olhando para o disfarce da Baronesa) É curioso que tenhamos tido a mesma ideia.

Joe – Um Pai Natal, nesta época, chama menos a atenção, sobretudo de noite.

Baronesa – Eu diria mesmo que até inspira confiança.

Joe – Estou convencido que a senhora também não veio aqui deixar presentes ao pé da árvore de natal.

Baronesa – Não… então partilhamos?

Joe – Se houver algo para partilhar…

Inspecionam o apartamento.

Baronesa – O espólio parece-me fraco.

Joe – Mas eu tinha boas informações; e penso que a senhora também.

Baronesa – Dizia-se que a velhota tinha dinheiro aqui em casa. Mas aparentemente era um boato.

Joe – Um cofre-forte?

Afastam o quadro para ver.

Baronesa – Atrás do quadro não há nada.

Joe – E o quadro?

Olham atentamente para o quadro.

Baronesa – Uma bosta.

Joe – Uma trabalheira para nada.

Baronesa – E eu que contava com isto para enganar e casar com um plebeu rico.

Joe – E eu para dourar o meu corpinho sob o sol dos trópicos.

Baronesa – Infelizmente o Pai Natal não existe.

Joe – Vá, vamos embora.

Baronesa – Vou ficar ainda um bocadinho; é melhor que não saiamos ao mesmo tempo.

Joe – Tem razão… Dois Pais Natal juntos dão muito nas vistas.

Baronesa – Sim… As pessoas iriam questionar qual dos dois seria o verdadeiro.

Joe vai-se embora. A baronesa espera que ele se afaste e arranha o quadro com a unha. Joe volta, desconfiado, e vê o que ela está a fazer.

Joe – Era isso mesmo que eu estava a pensar… O quadro é tão pesado…

Baronesa – É ouro maciço.

Joe – A senhora sabia?

Baronesa – Eu tomava chá com ela de vez em quando. Um dia deitei-lhe um comprimido no chá. Sob o efeito do extasy, era uma mulher encantadora.

Ambos olham para o quadro.

Joe – Um belo presente de Natal.

Baronesa – Mesmo a dividir pelos dois.

Joe – E temos que conseguir levá-lo, só os dois …

Baronesa – Acho que agora podemos agradecer à tia Lazarina.

Joe – E agora cabe-nos a nós desmentir o célebre ditado popular.

Baronesa – Qual deles?

Joe – Quem espera sempre alcança.

Baronesa – Oh… não sou nada supersticiosa.

Retiram o quadro da parede. E começa a tocar uma sirene de alarme. Consternados olham um para o outro.

Joe – A velhota era mesmo tramada!

Escuro.

FIM

 

Autor

Nascido em 1955 em Auvers-sur-Oise (França), Jean-Pierre Martinez fez as suas primeiras aparições em palco como baterista de diversos grupos de rock, antes de se tornar publicitário semiólogo. Depois de um período como argumentista para televisão, regressa aos palcos como dramaturgo. Escreveu uma centena de guiões para o pequeno écran e mais de sessenta comédias para teatro, das quais algumas já são clássicas. Hoje em dia é um dos autores contemporâneos mais representados em França e nos países francófonos. Por outro lado, muitas das suas peças, traduzidas em espanhol e inglês, estão regularmente em cartaz nos Estados Unidos e na América Latina. Jean-Pierre Martinez é diplomado em literatura espanhola e inglesa (Sorbonne), em linguística (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), em economia (Institut d’Études Politique de Paris) e em guionismo (Conservatoire Européen d’Ecriture Audiovisuelle). Foi sua a decisão de disponibilizar todos os textos das suas peças para download gratuito no seu site La Comédiathèque : http://comediatheque.net

 

Peça de Teatro do mesmo autor em português

Sexta-feira 13 (Vendredi 13)

Pode fazer-se download gratuito

de todas as peças de Jean-Pierre Martinez

no seu site : www.comediatheque.ne

Todos os direitos de tradução,
adaptação e reprodução são reservados.
Este texto está protegido pelas leis
relativas ao direito de propriedade intelectual.
Qualquer reprodução fraudulenta está sujeita
a uma condenação de até 300 000 euros e 3 anos de prisão.

Paris – Décembre 2016

© La Comédi@thèque – ISBN 978-2-37705-066-6

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UMA HERANÇA PESADA Lire la suite »